São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quem precisa de inimigos?

HELENA SALEM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para os americanos, uma 'boa causa como a ecologia não poderia estar associada a uma 'má causa' como o comunismo

Dois filmes exibidos no último Festival Internacional de Toronto, Canadá, tendo a realidade brasileira como tema e produção americana, colocam-nos algumas questões para reflexão. Os filmes são "The Burning Season" ("Tempo de Queimada", que também integrou a Mostra Banco Nacional de Cinema), dirigido por John Frankenheimer e produzido pela rede de televisão HBO; e "Boca", com produção executiva de Zalman King (o mesmo de "Nove Semanas e Meia de Amor" e "Orquídea Selvagem") e co-produzido pelo brasileiro Jofre Rodrigues, direção de René Manzor. Na verdade, um projeto integralmente idealizado por King que Manzor, obscuro diretor de TV nos EUA, apenas executou.
São dois filmes com propostas diferentes, mas que têm alguns pontos significativos em comum. Além da própria figura do produtor Jofre Rodrigues, filho do dramaturgo Nelson Rodrigues —o autor da peça "Boca de Ouro" (que já inspirou antes dois filmes: o primeiro em 1962, de Nelson Pereira dos Santos; o segundo em 1989, de Walter Avancini, também produzido por Jofre), na qual se baseia "Boca".
Foi Jofre Rodrigues quem comprou, em 89, os direitos para filmar a vida de Chico Mendes da viúva Ilzamar, numa operação polêmica (a viúva não consultou os ex-companheiros de Chico) cuja grande bandeira era justamente manter o filme sobre o líder seringueiro em confiáveis mãos brasileiras, deixando de fora as propostas americanas da Warner, Robert Redford e outros, ainda que algumas delas fossem bem melhores (do ponto de vista financeiro, inclusive). Só que Rodrigues comprou os direitos e rapidinho os revendeu para o produtor americano David Puttnam —aliás, um daqueles malfadados "gringos" que haviam disputado anteriormente o filme com o mesmo Jofre.
Uma clássica operação triangular, que deu no que deu: um filme que é uma grande mentira. Ainda que dourada pelas bem-intencionadas profissões de fé de seus realizadores (tão comuns a uma certa mentalidade culpada americana, anos atrás).
Como bem assinalou a Folha quando da sua exibição na Mostra Banco Nacional, "mataram Chico Mendes pela segunda vez". Na pele do emagrecido e esvaziado Raul Julia (que morreu no fim do ano passado), "The Burning Season" apresenta o líder seringueiro de forma esquemática, pobre, quase nos limites da bobeira.
E sabemos que Chico, ao contrário, era uma figura rica, complexa, muito distante daquele simplismo com que é retratado. Retiraram da história até a formação marxista do seringueiro na adolescência, fundamental para a compreensão de sua trajetória. Isso, em nome do "público americano", para quem, segundo argumentaram os produtores, uma "boa causa" como a ecológica, que Chico defendia, não poderia estar associada a uma "má causa" como o comunismo. Simples. Afinal, tudo foi feito em nome das melhores intenções: revelar ao mundo a heróica luta de um homem admirável. Ainda que assassinando sua alma.
Já com "Boca", trata-se de mostrar a tragédia das "sete mil crianças abandonadas que vivem nas ruas do Brasil", diz o material de divulgação. Neste filme —como "The Burning Season", também destinado à TV a cabo nos EUA—, além de igual esquematismo há uma melancólica grosseria na abordagem, a começar pelo erotismo de segunda, puramente apelativo, tão comum à obra de King.
Protagonizado por Tarcísio Meira que, como na versão de Walter Avancini, interpreta o papel-título de Boca de Ouro, bicheiro e traficante, misto de bandido e herói, agora falando em inglês, o filme tem uma galeria de atores e técnicos brasileiros, entre eles o (excelente) fotógrafo Pedro Farkas. A questão da língua insere-se no conjunto grotesco da obra: os brasileiros falam sempre em inglês (com o inevitável sotaque), inclusive os meninos de rua, mas de vez em quando alguém se expressa em português. Não se entende bem porque, já que é um filme de língua inglesa. Talvez, quem sabe, seja para dar aquela "cor local".
O fio condutor da história são dois jornalistas: a repórter JJ (Rae Dawn Chong) e o câmera Reb (Martin Kemp) —no texto original de Nelson Rodrigues, há apenas um repórter. Mulata, Rae introduz também a temática racial na história. Repete-se a velha ("e pretensiosa", segundo o crítico de Los Angeles Sam Robbins) fórmula dos jornalistas americanos que se propõem a "divulgar" para o planeta uma incrível e obscura tragédia do Terceiro Mundo. "É uma história que tem de ser contada para o nosso próprio benefício, ou então estaremos todos espiritualmente mortos" —afirma no final um dos personagens.
Rodado nas favelas cariocas, com muito carnaval, belas vistas do Rio, mulheres boazudas (entre elas, Luma de Oliveira), cenas de sexo em profusão, de lamentável mau gosto, meninos de rua assassinados, "Boca" faz a proxenetização da miséria. Repulsivo. Não se trata aqui de um olhar nacionalista, xenófobo. Longe disso. É uma questão do respeito que se deve a qualquer povo. E aí, mais uma vez as anunciadas boas intenções dos produtores de nada servem.
Aliás, após a exibição no Festival de Toronto, repulsa e indignação eram expressões correntes entre os jornalistas presentes, de variadas nacionalidades, a começar pelos próprios americanos. Sem falar nos muitos que se retiraram no meio da projeção. Um deles, a jornalista e escritora Elfrieda Abbe, de Chicago, comentou: "Os americanos são um povo muito voltado para si próprio. Quase sempre que tentam mostrar uma outra realidade, resulta num desastre. Não entendem nada. Os filmes rodados na África também são terríveis." Em parte, ela tem razão. Mas o problema talvez seja ainda mais complexo, extrapolando o âmbito da questão nacional.
Sem dúvida alguma, mergulhar na cultura alheia com verdade é sempre difícil. Mas não impossível. Requer talento especial e humildade, que só os grandes conseguem efetivamente ter. Talvez ninguém, nos anos 40, tenha ido mais fundo ao abordar a realidade brasileira no cinema do que Orson Welles, no inacabado e lindíssimo "Tudo É Verdade".
Mas Welles, antes de ser americano, era genial, chegou humilde, viu o que estava ao seu redor, apreendeu e contou com maestria. O italiano Michelangelo Antonioni também fez um belo documentário na China em 1971 e o excepcional "Zabriskie Point", rodado nos EUA. A história do cinema tem inúmeros exemplos. E aí, se o filme é falado em inglês ou alemão pode até não fazer diferença (embora a língua não raro também tenha o seu lugar como expressão de um povo —menos em temáticas existenciais do que nas sociais, como é o caso).
É claro que filmes como "Boca" e "The Burning Season" —que faturam a miséria e/ou as grandes causas— continuarão a ser feitos, propalando nobres propósitos. E empregando mão-de-obra local, duplamente conveniente: legitima o espetáculo e é mais barata ("Que diferença de Hollywood. Não há agentes, advogados ou empresários", diz sobre o Brasil o press-book de "Boca", ao explicar como foram constituídos o elenco e equipe nacionais). Só que, como afirma o ditado, com amigos desse tipo, nem precisamos de inimigos.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Todas as formas do amor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.