São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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O primeiro impeachment

GERALDO DE CARVALHO SILOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A polícia secreta investigou a vida de Shakespeare

Em 6 de fevereiro de 1601, agentes do Conde de Essex e de Southampton procuraram o gerente de "O Globo" (o teatro de Shakespeare) e deram-lhe 40 xelins para financiar a representação, na íntegra, na tarde seguinte, da peça "Ricardo 2º", em que o Bardo narra a rebelião contra um rei, a sua deposição e assassinato.
O objetivo político: motivar a população de Londres para apoiar o golpe de Estado, marcado para o dia 8, contra Elizabeth 1ª. A revolta explodiu; o povo não a apoiou e a rainha condenou Essex (seu antigo amante) à pena de morte e Shouthampton, à prisão perpétua. Lorde Gilley Merrick, que bancou a representação da peça e que a ela assistiu, foi degolado. A polícia secreta encarregou o famoso detetive Topcliffe de investigar o papel de Shakespeare na conspiração.
Nada se apurou, apesar da amizade de Shakespeare com Essex e com Shouthampton (o seu patrono). Shakespeare, segundo vários biógrafos, sofreu grande choque com a morte de Essex, o que transparece na última revisão do texto de "Hamlet". Quando o príncipe de Elsinore morre, Horácio sussurra: "Que uma guarda de anjos, cantando, te conduza ao teu repouso no céu!". Repete, quase, as palavras de Essex na Torre de Londres, pouco antes de ser executado.
Ricardo 2º, no palco pela primeira vez em 1595, foi publicado "in quarto" em 1597. A censura, implacável em matéria política e religiosa, suprimiu as cenas da deposição e do assassinato, e somente em 1608, na quarta edição, a peça apareceu impressa sem cortes. É a primeira obra da segunda tetralogia de Shakespeare baseada na história inglesa e —como "Rei João"— inteiramente escrita em verso. Riquíssima de imagens e ao mesmo tempo profundamente realista, é tragédia e obra política que "explora a natureza do governo monárquico, os deveres dos súditos e o realismo das lutas partidárias", como observou Sylvan Barnet.
Filho do "Black Prince" e neto de Eduardo 3º, Ricardo subiu ao trono aos 11 anos de idade, por direito divino, e, depois de uma década no poder, revelou-se corrupto, leviano e incompetente: dilapidou o patrimônio do país, perdeu as possessões na França, confiscou terras, créditos, bens, moedas; estatizou propriedades em benefício próprio e tornou-se impopular com os ricos e os pobres —praticando em tudo, como assinala Coleridge, "insinceridade, parcialidade, arbítrio e favoritismo".
Sendo Ricardo 2º um estadista, Frye descreve-o como "poeta, músico e ator". Ama a poesia; "pensa através de imagens", como lembra H. Clemen. Quando exilam a sua mulher para a França, diz-lhe: "Let me unkiss the oath between you and me..." (Deixe-me desfazer com um beijo o voto que existe entre você e mim).
Belo homem, com um estilo de beleza meio efeminado, agradavam-lhe os produtos estrangeiros, o luxo e as roupas faustosas. Foi o primeiro rei inglês a posar para pintor. Deliciava-se com o mando, mas fugia às suas responsabilidades. Entretanto, substituto de Deus na terra, ("deputy elected by the Lord"), era intocável, segundo o "direito constitucional" da época.
E o seu tio Gaunt —que pronuncia o mais belo elogio já feito à antiga Inglaterra— mantém-se fiel às regras políticas medievais e declara que nunca levantaria o "braço colérico" contra o rei escolhido por Deus, apesar de ser seu inimigo atroz. Gaunt morre e o rei apropria-se dos domínios feudais que caberiam como herança paterna a Bolinbroke, o rival de Ricardo.
Bolinbroke regressa do exílio apenas para recuperar as propriedades, mas depõe Ricardo, a esta altura já abandonado pelos amigos e pela tropa. Sem possibilidade de lutar, Ricardo, em público, no Parlamento, entrega a coroa a Bolinbroke: "Eis, meu primo, pega a coroa".
Ricardo precipitou-se: abandonou a função de rei antes de abdicar formalmente ao trono, gerando vácuo político que facilitou a Bolinbroke a tomada do poder, com o voto favorável do Parlamento. "Estais contente com a abdicação?" pergunta-lhe Bolinbroke. Ricardo responde-lhe: "Sim, não; não, sim..."
Ainda no Parlamento, e numa cena pungente, Northberland ordena a Ricardo que leia em voz alta a lista dos crimes que ele e os seus partidários haviam cometido, confessando que se tratava da verdade. Ricardo responde-lhe que depor um rei também é crime e que não pode ler o documento porque os seus olhos estão cheios de lágrimas. Pede um espelho para ver como se parece, agora que não é mais rei. Recebe o espelho e espatifa-o no chão... Termina o governo do "último rei da velha ordem medieval".
(Shakespeare não emprega o vocábulo "impeachment" na peça. Usa-o três vezes, com sentidos diversos, em outras produções. Só em 1643 o termo aparece com o atual conteúdo jurídico. Mowbray, condenado ao exílio, declara a Ricardo: "I am disgraced, impeached...". No paço, "impeached" corresponde a "acusado de traição", segundo Hulme).
Depois da coroação do novo rei, que passou a chamar-se Henrique 4º, Ricardo seguiu para a prisão, no Castelo de Pomfret, onde pronunciou o famoso e belíssimo solilóquio em que compara os erros que cometera com música mal-tocada. O serviçal que o acompanha conta que o novo soberano entrou em Londres montado no corcel árabe do seu antecessor e que o animal troteara orgulhoso da carga... Ricardo zanga-se, chamando o cavalo pangaré ("jade").
E aí chega o carcereiro, trazendo-lhe a refeição. Ricardo pede-lhe que a prove, como era o costume, mas o carcereiro recusa-se a fazê-lo por ordem de Exton que, ouvindo a gritaria, entra na cela com vários ajudantes e assassina Ricardo, tendo-se lembrado da perversa sugestão de Henrique 4º (desejava a morte do rei deposto, mas necessitava de bode expiatório).
Exton leva o caixão com o cadáver de Ricardo para o soberano, que não nega a insinuação de que lhe agradaria o crime. Mas exila Exton e decreta funerais oficiais para Ricardo.
Shakespeare não escreveu a peça pensando no governo de Elizabeth 1ª e nas ambições políticas de Essex. "Enfatiza —di-lo Stanley Wells— mais o caráter universal do que o particular nos elementos da usurpação feita por Bolinbroke." Se a Ricardo cabia o trono por ter sido escolhido por Deus, não podia ocupá-lo por falta de competência e por corrupção. Bolinbroke, sem direito à coroa, possuía grandes qualidades para exercer o mando. Mas mostrou-se monstruoso no assassinato do antigo rei e na execução de Bushy e de Green, partidários do soberano deposto.
O golpe de estado contra Ricardo 2º, sancionado pelo Parlamento, rompeu revolucionariamente com a doutrina do direito divino dos reis. As idéias do Renascimento chegavam à Inglaterra. E uma nova visão dos direitos e deveres dos príncipes.

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