São Paulo, sábado, 4 de março de 1995
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Livro sobre genes enterra de vez o racismo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os editores brasileiros devem estar lendo com interesse igual ao meu, ainda que com uma certa apreensão, o que se escreve nos Estados Unidos sobre a publicação de "História e Geografia dos Genes Humanos". Vou logo esclarecendo que a apreensão que imagino dos editores se refere ao fato de que a obra tem mil páginas, ilustradas de mapas incontáveis e gráficos que vão de fósseis, genes e cromossomos a sangue vivo colhido entre as populações do mundo.
Ao longo de decênios um grupo de geneticistas, comandado pelo professor Luca Cavalli-Sforza, coligiu os dados que formam este belo mapa-múndi, que é a radiografia genética da espécie humana. O livro foi publicado pela Princeton University, onde Cavalli-Sforza é professor, e seu argumento central é que a árvore genealógica do mundo, cujos frutos com os milênios foram ficando brancos, amarelos, pretos, provém de uma raiz única, aliás africana.
O livro é, assim, uma lápide, com epitáfio e anjo, no túmulo dessa asnática questão de supostas superioridades raciais. Não li e não lerei o badalado "A Curva do Sino" pois não tenho tempo a perder com arrogantes besteiras oriundas das ruminações intelectuais do conde de Gobineau e do germanófilo inglês Houston Stewart Chamberlain, que acabou casando com a única filha que teve Wagner e produzindo, como filhos espirituais, os nazistas.
Aliás, é bom não esquecer nunca, ter sempre em mente, que os arianos da Alemanha de Hitler não pretendiam, em nome da raça superior, eliminar apenas os judeus e sim todos aqueles que não fossem nórdicos e louros. O lixo humano nazista foi devidamente incinerado em Nuremberg e no "bunker" da Chancelaria do Terceiro Reich. Agora cai sobre ele a monumental pedra que é a "História e Geografia dos Genes Humanos". Termina assim, e não era sem tempo, o pior filme da UFA alemã.
É um livro necessário, o de Cavalli-Sforza, que espero que venha a ter a maior divulgação possível, porque vários tipos de racismo prosperam no mundo atual e porque mesmo num país irrecusavelmente mestiço como o Brasil ele está longe de desaparecer. Reparem como foi curiosa a reação quase generalizada às palavras bem-humoradas a propósito da própria raça que pronunciou um dia o então candidato Fernando Henrique Cardoso.
Ele se apresentou como meio mulatinho e com um pé na cozinha e foi um deus-nos-acuda. A gafe do candidato não foi a de admitir que tivesse sangue negro nas veias, e sim, simplesmente, a de quebrar um tabu, trazendo esse assunto racial à atenção do país. Logo ele, que era o candidato mais polido e culto, mais membro da elite entre todos.
Devo dizer, eu que não votei nele, que quase transferi meu voto para FH naquele ocasião. Pelo arrepio que ele havia propagado pelo Brasil inteiro. Se ele tinha um pé na cozinha, quem de nós teria os dois no tapete da sala de jantar?
O Brasil é mestiço desde a primeira grande façanha que empreendeu, de alargar o território nacional com as bandeiras. É o que nos lembra Gilberto Freyre, num ensaio intitulado "A Propósito de Paulistas". Nele, com a graça e sinuosidade do seu estilo, declara profunda admiração pelo dinamismo paulista sem deixar longe da nossa vista por muito tempo sua ternura por um Brasil que não há de permitir que se derreta dentro de si mesmo a influência doce da civilização do açúcar.
Elogia a obra dos bandeirantes, que atraiu brasileiros de todos os cantos do país, além de estrangeiros "e mesmo negros da Guiné, que o sr. Cassiano Ricardo acaba de demonstrar, em páginas bem documentadas, terem participado ativamente dos movimentos de expansão paulista". Mas de repente Gilberto cai num daqueles seus devaneios proustianos, falando no olindense Saldanha Marinho e no baiano Teodoro Sampaio:
"Sampaio foi mulato ilustre, nascido na Bahia, que em São Paulo, e dentro da configuração psicológica de bandeirante, é que se afirmou como geólogo e engenheiro. Ganhou igualmente, por um como mimetismo, aquele ar meio fleumático, meio enérgico, com que Saldanha Marinho se integrou na condição de paulista-velho, sem que nem o olindense nem o baiano perdessem de todo, no processo da conversão a bandeirantes, o encanto de homens nascidos à sombra de civilizações socialmente mais aristocráticas e maduras que a de Piratininga."
Para acentuar mais ainda a impressão que transmite de São Paulo como o grande "melting-pot" do Brasil, Gilberto Freyre se ocupa a fundo no seu ensaio de um médico irlandês que emigrou para São Paulo na primeira metade do século 19. Chamava-se Richard Daunton e deixou um acervo de preciosas cartas sobre o Brasil. Foi Sérgio Buarque de Holanda quem chamou a atenção de Gilberto para Daunton e eu confesso que só vi tal nome no ensaio de que estou me ocupando aqui.
Acho que apenas Sérgio e Gilberto leram as ditas cartas, além do destinatário, o barão Homem de Melo, e admiraram o irlandês que casou na família do padre Diogo Feijó e virou, ele próprio, paulista-velho da gema. Aliás, minto ao dizer que só os dois sabiam da existência de Daunton pois Gilberto cita sobre o irlandês um belo trecho de estudo de Afonso de Escragnolle Taunay:
"Tradicionalista apaixonado, Daunton perscrutou o passado do Brasil com verdadeiro amor, empolgado pela grandeza da obra daqueles que rechaçaram quase para o sopé dos Andes o castelhano e a linha de Tordesilhas e cujo sangue corria na veia de seus filhos."
Fiquei tão entusiasmado mesmo com o pouco que li sobre a "História e Geografia dos Genes Humanos" que me comovi de novo com a lembrança dos homens de várias raças que meteram o ombro na floresta e empurraram o meridiano de Tordesilhas. Vamos ver se algum dia, neste majestoso palco do território nacional, que eles criaram, montaremos afinal um show digno de nota.

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