São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Minas faz festa para ex-escrava de 124 anos

HELCIO ZOLINI
DA AGÊNCIA FOLHA, EM ITAJUBÁ (MG)

A mineira Maria do Carmo Jerônimo completa hoje em Itajubá (MG) 124 anos, quatro a mais que Jeanne Louise Calment, apontada pelos franceses como a pessoa mais velha do mundo.
Como homenagem, a igreja matriz da cidade celebra hoje duas missas e as prefeituras de Itajubá e Carmo de Minas oferecem a ela um bolo de aniversário e festa no asilo Vila Vicentina.
Escrava até os 17 anos, Maria do Carmo vive em Itajubá, para onde se mudou em 1942 a fim de ajudar a criar os filhos do historiador José Armelim Bernardo Guimarães, 80.

Lembranças
Maria do Carmo não tem noção de dinheiro e não sabe quem é o presidente da República, mas lembra da época da escravatura.
"Sou filha de Sabina. Dormia com muitos. Lavava roupa na Serrinha", a fazenda onde nasceu, em 1871, local próximo a Carmo de Minas (no sul do Estado).
A fazenda pertencia ao capitão da Guarda Nacional Luiz José Monteiro de Noronha. Ela se lembra de seu feitor. "Ele era muito ruim, batia muito em mim."
O pai de Maria do Carmo era Jerônimo, um "reprodutor" (escravo forte e sadio, escolhido pelos senhores para gerar filhos com as escravas), segundo contou Guimarães, que pesquisou a história da ex-escrava.
Guimarães "encontrou" Maria do Carmo na cidade de Cristina (MG). "Ela trabalhava numa casa de família, como doméstica. O patrão me falou para não levá-la, que iria me arrepender porque ela já tinha mais de 60 anos e não servia mais para nada."
Maria do Carmo nunca quis casar nem ter filhos. Teve três irmãos, Ana, José e Joaquim, que morreu ao levar um coice de um cavalo. Os outros e a mãe, segundo ela, foram levados ainda crianças para outra fazenda.

Vinho e feijoada
Maria do Carmo não aparenta a idade que possui. "Ela dorme tarde, não faz regime, come e bebe de tudo. Adora vinho e feijoada", disse Bernadete, filha de Guimarães e que, com seus 11 irmãos, foi criada por Maria do Carmo.
"Gosto muito de vinho e chouriço (tipo de linguiça preparada com mistura de sangue de porco)", afirmou Maria do Carmo. Diz "odiar" apenas duas coisas na vida: "Casamento e sapatos".
"Casamento é abacaxi, não está com nada", diz Maria do Carmo. Acima do vinho e da alegria de viver, ela diz ter só uma paixão: ir à igreja e rezar para Nossa Senhora Aparecida.
Pelo menos duas vezes por semana, "dona Maria", como é chamada pelos moradores de Itajubá, anda a pé cerca de dois quilômetros e meio para participar da missa na igreja matriz Nossa Senhora da Soledade.
"Já houve vez de faltar o vigário, mas ela não falta nunca a uma missa", disse o padre José Tarcísio Pereira Machado.
Também não perde uma procissão e não recusa convites para ir a Aparecida do Norte (SP). "Rezo muito e peço sempre a Deus saúde para todos."
Todos os dias ela molha as plantas do jardim da casa de Guimarães, onde mora desde os 71 anos. "Pode estar até chovendo, que ela não descansa enquanto não vai molhar suas plantas", disse Bernadete.

Título negado
Maria do Carmo manifesta também dois outros desejos que gostaria de ver realizados: conhecer o mar e ver o papa.
Apesar de considerada por muitos dos habitantes de Itajubá um "patrimônio da humanidade", ela passou por uma situação constrangedora no ano passado.
A Câmara Municipal recusou conceder-lhe o título de cidadã honorária da cidade, que havia sido proposto através de um projeto do vereador Cláudio Oliveira.
A justificativa foi de que haveria pessoas mais importantes para receber a homenagem.
Os 124 anos de Maria do Carmo são confirmados pelo registro de seu nascimento, guardado na paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Carmo de Minas.

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