São Paulo, segunda-feira, 6 de março de 1995
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Tradição e modernidade lutam em 'Keita'

LÚCIA NAGIB
DA ENVIADA ESPECIAL A UAGADUGU

O efeito estimulante do Festival Pan-Africano de Cinema (Fespaco) está se fazendo sentir na cinematografia local. São de Uagadugu dois dos mais interessantes longas-metragens em competição: "Haramuya", de Drissa Touré, e "Keita, da Boca ao Ouvido", de Dani Kouyate.
Ambos não ficam nada a dever às obras já consagradas de outro burquinense, Idrissa Ouédraogo, premiado com o "Garanhão de Yennenga", em 91, por "Tilai".
Quando todos esperavam uma repetição da temática tribal e do estilo lento e lacônico cunhado por Ouédraogo, Touré apareceu com um filme inteiramente urbano, de ritmo ágil e cheio de humor.
Em "Haramuya", o passado tribal já ficou para trás, para a antiga família de pescadores animistas, convertida ao Islã e tentando sobreviver na cidade. Os filhos do velho Fousséini se viram como podem, desprezando as tradições e as regras religiosas do pai.
Acabam, evidentemente, se envolvendo em furtos, num pequeno comércio de drogas e na prostituição. Mas nada disso é narrado como o "mal" urbano, mas simplesmente como a trama que está por trás de cada pequeno incidente com que nos deparamos no dia-a-dia de uma cidade africana.
Focalizando esses incidentes (em si, insignificantes) de forma fragmentária e em rápidas mudanças, o filme acaba envolvendo num mesmo contexto todas as camadas sociais, desde o empresário branco até a polícia.
Espécie de intermediário entre Ouédraogo e Touré, Kouyate, forte concorrente ao "Garanhão de Yennenga", focaliza em "Keita" o encontro áspero entre tradição tribal e modernidade urbana.
No centro encontra-se uma criança que se recusa a decidir entre uma ou outra cultura, insistindo na difícil pretensão de ficar com as duas. Em entrevista à Folha, Kouyate explicou a concepção de seu filme.

Folha - Em "Keita", há um contraste entre cidade e aldeia. A história que se aprende na escola entra em choque com a lenda contada pelo "griot" (narrador e músico que transmite a história das origens do homem). Você estaria tomando partido de alguma delas?
Dani Kouyate - Não quero tomar partidos, faço uma pintura social. O que estou mostrando corresponde a uma realidade dos africanos de hoje, na cidade moderna e na aldeia tradicional. No momento, o que se deve fazer é promover uma mistura, é preciso encontrar um equilíbrio inteligente. Eis o que eu procuro fazer.
O garoto que escuta a história tradicional de sua origem e que, ao mesmo tempo, vai à escola, não quer escolher entre as duas. São os detentores dessas culturas que não conseguem entrar em acordo entre si. No entanto, é isso que deveria ser feito, para que o garoto pudesse ter um aprendizado mais rico.
Folha - Você acredita que as mulheres são mais realistas, mais ligadas à modernidade do que os homens? No filme, a mulher cumpre esse papel.
Kouyate - No filme, de fato, a mulher é a única realista. Mas isso não quer dizer que as mulheres sejam mais realistas do que os homens, seria uma generalização excessiva. Entre os homens, de vez em quando também aparece um realista...
Com relação à mulher do filme, o fato de ser realista não a torna um personagem malvado. Ela simplesmente percebe que os tempos mudaram e que é preciso ter coragem de assumir essa mudança.
Folha - Você poderia contar um pouco sobre o ator que faz o "griot" e que é seu próprio pai?
Kouyate - Meu pai é realmente um "griot", e esse filme é minha própria história e a história de minha família. Eu também sou "griot", é uma questão de casta, uma profissão que se passa de pai para filho. Meu pai, portanto, representou o que ele é na vida real.
(LN)

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