São Paulo, terça-feira, 7 de março de 1995
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Orquestra interpreta a música de transparências de Messiaen

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrita entre 1987 e 1991, por encomenda da Filarmônica de Nova York, "Éclairs sur l'Au-delà" (Iluminações do Além) foi a última obra composta por Messiaen.
Dividida em 11 movimentos, com duração total de mais de uma hora, ela representa, quase programaticamente, um somatório de 60 anos de música e a repetição, em escala monumental, das obsessões características do compositor: o canto dos pássaros, os ritmos orientais, as grandes heterofonias e o fundamentalismo católico romano.
Nada poderia ser mais inesperado para um compositor contemporâneo. Avesso a todas as correntes musicais e intelectuais de seu tempo, dono de uma invenção absolutamente pessoal, Messian é, sem paradoxo, a maior expressão musical de sua geração.
Grande professor, influência marcante sobre Boulez, Stockhausen e inúmeros outros compositores dos anos 40 aos 90, ele teve a grandeza e a sabedoria de não se fazer ouvir na música dos outros. Todos aprenderam com Messiaen, mas ninguém escreve como ele.
Sua linguagem é reconhecível ao primeiro acorde e é sempre acessível e comunicativa, sem se esforçar por isso. Ele é o mais generoso, o mais natural e, quem sabe, o mais sincero dos compositores modernos.

Atraso
Exuberante e minuciosa como a própria música de Messiaen, não há o que se possa reclamar desta gravação da Orchestre de l'Opéra Bastille, regida por Myung-Whun Chung, exceto o atraso de dois anos.
A enorme orquestra inclui nada menos que dez flautas, dez clarinetes, cinco trompetes, seis trompas e 12 percussionistas tocando um arsenal completo que vai desde xilofones e gongos a blocos chineses, máquina de vento e reco-reco. O resultado, na maior parte do tempo, é delicado, uma música de transparências, mais do que de força.
No centro e no final das "Iluminações" ficam dois adágios para cordas, que fazem lembrar a "Louvação" do "Quarteto para o Fim dos Tempos" ou "As Três Pequenas Liturgias".
Nesses momentos, como também no coral de metais do início, a música parece capaz de se prolongar infinitamente, como se o tempo andasse à roda.
Liberado da duração, o tempo musical de Messiaen atinge aqui sua mais alta ambição religiosa: ele se torna circular e sem fim, como o paraíso, ou a inteligência, quando é uma intuição de si mesma. Em outros, como no sétimo movimento, "As Estrelas e a Glória", a música fala com toda a confiança na terra, multiplicada nas vozes dos pássaros.

Oração
A música, para Messiaen, é sempre uma forma de oração; mas uma oração que só pode se dar, precisamente, na música. Religião e arte se confundem, como na música indiana, ou na Catedral de Chartres.
Toda a segunda metade das "Iluminações" é pontuada por estados de suspensão e trinados, que Messiaen reinventa a partir das lições de seu antigo aluno Boulez. E há uma outra ambiência que relembra um pouco o "Jardim do Sono de Amor", da sinfonia "Turangalila" (1948). São "nebulosas", como ele mesmo diz, numa linguagem entre o poético e o técnico.
Como em tantas outras vezes, há referências ao "Livro do Apocalipse" nas páginas da partitura. Mas a visão final de Messiaen não é de terror, nem mesmo quando os sete anjos fazem soar suas trombetas (sexto movimento).
Nesta última obra, monumental, assim como nas peças menores para piano, para órgão, ou na música de câmara, Messiaen é o maior mestre contemporâneo da composição como religião do encantamento.

Disco: Éclairs Sur L'Au-Delà
Intérprete: Orchestre de l'Opéra Bastille
Regência: Myung-Whun Chung
Gravadora: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 25

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