São Paulo, terça-feira, 7 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Neocapitalismo

HÉLIO SCHWARTSMAN

O mundo é um lugar estranho. O noticiário da semana passada foi decididamente dominado pela crise mexicana e suas ramificações pela América Latina e também pela trapalhada do jovem inglesinho que, de uma só tacada, perdeu US$ 1,3 bilhão forçando o fechamento da casa bancária Barings, de 232 anos.
Naqueles tempos em que a gente lia o sisudo Marx, aprendia que o capitalismo era uma espécie de roubo: o sujo capitalista, através da sórdida acumulação primitiva, obtinha o controle dos meios de produção, contratava a pobre mão-de-obra, comprava a rica matéria-prima, produzia e vendia. Seu lucro vinha da apropriação do excedente produzido pelos trabalhadores, a famigerada mais-valia.
Eis que agora o mundo descobre que o velho roubo capitalista se transformou em uma série de práticas inofensivas. Em vez de espoliar o pobre trabalhador, os capitalistas, nestes tempos do politicamente correto, inventaram outras formas de ganhar dinheiro sem prejudicar o povo. Uma delas é fazer apostas entre si, um inocente passatempo, não muito diferente de uma noitada num cassino.
É muito simples. No lugar de produzir mercadorias, o que necessariamente implicaria explorar a desafortunada mão-de-obra, o bom capitalista prefere apostar com o seu colega a que preço vai estar sendo negociado, por exemplo, o barril de petróleo do tipo Brent em Roterdã no dia 29 de julho de 2003. Esse curioso pôquer financeiro atende pelo nome de mercado de derivativos.
E como os capitalistas não podem perder dinheiro sob pena de deixarem de ser capitalistas para tornarem-se falidos, o que parece ser bastante desagradável, eles criaram uma série de salvaguardas. Por exemplo, para não correr o risco de perder nos derivativos, inventaram as chamadas operações "hedge" (cerca). Trata-se de uma garantia. Se eu apostei que o Brent em Roterdã vai subir, aposto também que ele vai cair e, assim, me livro de eventuais prejuízos.
É claro que esse jogo é reservado apenas para capitalistas. Você pode imaginar, leitor, o que aconteceria se você chegasse a um grande cassino, tomasse um lugar na mesa de roleta e começasse a apostar simultaneamente no vermelho e no preto ou no par e no ímpar? É fácil. Ou seria expulso da mesa por desconhecer as regras básicas do jogo, ou seria retirado numa camisa-de-força, por desafiar o que os homens convencionaram chamar de razão. O imprudente inglesinho se deu mal porque cometeu o erro de apostar apenas no preto. Deu vermelho.
O sistema dá certo, para os capitalistas. Mesmo apostando de todos os lados, os especuladores saem, na maioria das vezes, ganhando. São relativamente raros deslizes como o do inglesinho.
É claro que de vez em quando surgem probleminhas mais gerais nas diversas aplicações desse neocapitalismo em que a noção de risco foi abolida. Foi o que aconteceu no México. Nestas ocasiões, convence-se alguns países a emprestar dinheiro para o México para garantir que os investidores não sairão perdendo. Em troca, o México oferece seu petróleo como garantia, a inflação sobe, a recessão desponta, mas o trabalhador já não é mais explorado pelo bom capitalista. Já existe até mesmo a participação nos lucros.
Quem foi mesmo que disse que o crime não é roubar um banco, mas sim fundar um?

Texto Anterior: Liquidação de verão
Próximo Texto: AMEAÇA REAL; BANDAS; "PULP FICTION"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.