São Paulo, sábado, 11 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mulher macha

JOSUÉ MACHADO

Células machas? "Machas são apenas os gays", disseram os críticos do leitor Ubirajara Dolacio Mendes, de São Paulo (SP), que escreveu "células machas" em seu trabalho de sociologia. Dizem eles que o certo é "células-macho".
Seus críticos são muito machos, pelo jeito, mas macho e fêmeo são adjetivos que concordam, sim, com o substantivo a que se referem. Normalmente macho e fêmeo são usados para indicar o sexo dos seres nominados pelos substantivos epicenos, belíssimo nome. Epicenos são nomes que indicam com uma só forma ambos os gêneros. Então, baleia macha, cobra macha, flores machas, palmeira macha, pulga macha, sardinha macha, zebra macha. Ou baleia fêmea, zebra fêmea e assim por diante. Todos esses nomes pertencem ao gênero gramatical feminino, portanto são precedidos pelo artigo "a".
E os epicenos do gênero gramatical masculino —tubarão, jacaré, pernilongo, sapo— são precedidos pelo artigo "o", claro, e também recebem a ajuda dos adjetivos macho e fêmeo quando necessário: jacaré fêmeo, pernilongo fêmeo, sapo fêmeo, tubarão fêmeo. Ou macho, se for um rapazote.
Portanto, célula macha, embora, como o leitor sabe, passam utilizar-se os adjetivos masculino e feminino, mais suaves: célula masculina, gestos femininos, mulher masculina, homem feminino, gemidos femininos.
Se alguém, impolido, fosse classificar o gay com um daqueles adjetivos mais fortes, sugeridos pelos críticos do leitor, diria homem fêmeo. A dama correspondente, que anda pela vida pisando forte, seria deselegantemente classificada de mulher macha. Daí se conclui haver um engano nos versos do baião cantado por Luís Gonzaga:
"Paraíba masculina,
mulher macho, sim, sinhô!"
Terá sido escorregão do computador do Humberto Teixeira, se é que foi ele o letrista. A Paraíba é masculina mulher macha, sim, sinhô!
A ameaça do drácula
Numa nota, o jornal publicou que "a polícia de Nova York deteu ontem o ator Johnny Dep...". "Deteu". Claro, comeu, deu, leu, meteu, deteu. "Deteu" é o resultado de uma espantosa conjugação verbal: "eu deti, tu deteste, ele deteu, nós detemos, vós detestes, eles deteram". Esse curioso pretérito perfeito do indicativo de deter era acusado no século 15 pelos habitantes de Brasov, nos Alpes da Transilvânia, situados na atual Romênia. Não muito longe, reinava Vlad 4º, o Empalador, príncipe da Valáquia, também conhecido como conde Drácula. Intransigente defensor da língua, mandava empalar o pessoal da "Folha da Transilvânia" que conjugasse verbos errado. Há quem diga que esse castigo era severo demais. Por ter olhinhos puxados, o conde era chamado discretamente de "Samurai da Folha".
Aplicava o mesmo castigo aos representantes do povo que vadiassem, propusessem o aumento do próprio salário e mais o décimo-quinto salário. E também a quem pleiteasse horário eleitoral compulsório no rádio e na TV. Há quem diga que esse castigo era bem merecido.
Mas não havia castigo par quem escrevesse "deteu", forma correta nas escarpas morcegosas da Transilvânia. Só que bem antes disso, na ibérica Lusitânia, o verbo latino "detinere" ("detinuit" na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo) havia gerado em português o simples "deteve": detive, detiveste, deteve, detivemos, detivestes, detiveram.
Seria o computador o responsável pelo transilvânico "deteu" um filhote espúrio do sanguinário Drácula, o Empalador, infiltrado entre nós? Estaria o conde chegando? Que tal soltá-lo na praça dos Três Poderes em Brasília com suas lanças empalatórias vingadoras?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

Texto Anterior: Pasta de coca é droga consumida em Manaus
Próximo Texto: O Tamanho(zinho) do Estado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.