São Paulo, terça-feira, 14 de março de 1995
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Oportunidade desperdiçada

JOSÉ ROBERTO FERRO

Costumamos dizer que entre Natal e Carnaval nada acontece no Brasil. Neste ano, porém, o setor automotivo foi "inundado" por inúmeras decisões governamentais que impactam o seu futuro.
A ação foi fulminante. As decisões anunciadas na reunião da câmara setorial automotiva em 6 de fevereiro (aumento da alíquota de importação) e, em seguida, diretamente pelo Ministério da Fazenda (aumento do IPI dos "populares", restrições ao financiamento do consumo) foram as primeiras orientações importantes do novo governo em direção a uma "nova política industrial" para o setor. Após dois anos de intenso crescimento, chegaram as primeiras "más notícias".
Uma avaliação da abertura econômica e do processo de reestruturação do setor automotivo mostra um acúmulo de sucessos relativos: inúmeros novos produtos lançados, maior produtividade, melhor qualidade, preços menores, melhores salários, novos empregos indiretos, maior oferta de produtos e opção de escolha ampliada aos consumidores, maior competição, ampliação da arrecadação etc..
Todavia, não se deve perder de vista que resta muito para a indústria brasileira tornar-se competitiva internacionalmente. A linha de produtos ainda é antiquada, mesmo tendo-se reduzido o "gap" de cinco para três vezes acima da média mundial de idade de "design"; os custos são muito elevados, os impostos elevadíssimos, gerando preços altos. Mas, se políticas adequadas forem estabelecidas, talvez em cinco anos de transição consigamos superar esse atraso.
Em 1993, elaboramos um estudo para o Ministério da Ciência e Tecnologia, dentro de um amplo projeto ("Estudo de Competitividade da Indústria Brasileira"), onde apontávamos, entre outras sugestões, um cronograma de redução das alíquotas até chegar a 20% no ano 2000 e uma continuada redução na carga tributária, diminuindo também a distância entre a tributação dos "populares" e dos outros modelos.
Desde então, ocorreram desdobramentos importantes: desarticulação e inconsistência na implementação das políticas do governo na segunda metade de 1993 e em 1994, o sucesso do plano de estabilização e mudanças na estratégia competitiva e nas posições de mercado das principais montadoras.
O governo brasileiro vinha, corretamente, administrando a abertura da economia através da redução gradual das alíquotas de importação, evitando os problemas e a ineficácia relativa de uma política de restrição quantitativa (cotas).
Entretanto, em uma nova etapa do Plano Real, resolveu-se abruptamente reduzir as alíquotas de importação de 35% para 20%, em setembro passado. Essa aceleração do ritmo de abertura não poderia ser acompanhada, instantaneamente, pela intensificação do ritmo de modernização da indústria local. E com isso, avolumaram-se os planos de importação de veículos.
Por outro lado, a distribuição equivocada de impostos (IPI "simbólico" para carros "populares") criou uma indesejada superespecialização nesse segmento, praticamente o único que cresceu nesse período de "boom".
O sucesso do plano de estabilização, por sua vez, tem contribuído para aumentar o consumo de veículos, que já vinha crescendo anteriormente devido à queda de preços, através da redução de impostos e custos, e pelo aumento da competição, graças à abertura.
Finalmente, ocorreram importantes mudanças na estrutura e posição competitiva das montadoras, como a separação da maior empresa do setor, a Autolatina, redefinindo as estratégias da VW e Ford e a ascensão continuada da Fiat.
A correção de dois erros do passado —a abrupta redução da alíquota de importação e a política do "carro popular"— poderia ter sido uma oportunidade de acelerar o processo de modernização da indústria.
Por exemplo, poderia ter sido estabelecida uma agenda mais agressiva de redução das alíquotas, assumindo que o intenso crescimento do mercado estimularia o aumento do ritmo de modernização da indústria. E a urgente necessidade de redução dos custos sistêmicos de produção, na pauta do governo, seria o outro vetor favorável adicional.
O crescimento do volume de veículos importados continuará, mesmo com todas as restrições recentes, inclusive cambiais. No outro "front" do comércio internacional, não parece haver possibilidades de ampliação significativa e de diversificação das exportações, hoje excessivamente dependentes da Argentina (mais de 70% em 1994). Ou seja, o potencial de déficit comercial setorial continua. E o ágio dos "populares" iria ser reduzido significativamente, na medida em que os resultados da reprogramação do mix das montadoras fossem aparecendo.
A mudança da tributação do IPI dos "populares" de 0,1% para 8% deveria sobrepor-se a uma política de redução do IPI dos outros modelos, enquanto aguardamos uma reforma tributária mais ampla.
De qualquer modo, o aumento de impostos estará garantindo um incremento substancial das receitas governamentais.
A capacidade produtiva da indústria pode aumentar um pouco ainda, sem requerer investimentos em novas plantas, pois, com o grau de integração entre Brasil e Argentina, a questão da capacidade tornou-se mais complexa, devendo ser considerada no âmbito dos dois países. Mas deveremos ter até o final da década outras montadoras presentes no país.
O "boom" dos últimos dois anos, o sucesso do plano de estabilização e a consequente ampliação do mercado interno colocam o Brasil, mais decisivamente, na agenda das montadoras mundiais em um momento em que intensificam-se as forças de globalização, com a maior abertura dos mercados, maiores fluxos internacionais de capital e novas oportunidades de investimento.
O desafio da indústria automotiva brasileira é tornar-se competitiva globalmente e contribuir para ampliar o nível de motorização do país, ainda um dos mais baixos do mundo. Para isso, é necessário recuperar quase 15 anos de atraso em cinco.
Devemos dar crédito ao governo, que talvez tenha tomado essas decisões rapidamente, assustado com os possíveis desdobramentos da crise mexicana e também procurando corrigir certos desajustes acumulados. Mas vamos aguardar uma política setorial mais consistente de médio e longo prazo, pois há uma longa e crucial pauta de itens sendo tratados por uma câmara setorial revigorada.

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