São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1995
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Bergman discute fim do inferno conjugal

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Na primavera de 1973, Ingmar Bergman entrou na seara de Gilberto Braga e abafou. Durante seis semanas, os suecos riscaram as noites de quarta-feira de sua agenda social para acompanhar uma telenovela escrita e dirigida por ele. E muitos chegaram a tirar o telefone do gancho para evitar chamadas indesejáveis durante a transmissão de "Cenas de um Casamento" (Scener ur ett Aktenskap). Só mesmo na Escandinávia. Aqui só a emissora que a transmitisse tiraria o telefone do gancho para evitar as reclamações dos telespectadores.
Explica-se: as peripécias de "Cenas de um Casamento" não encheriam cinco minutos de "Pátria Minha".
Bergman fez, como era de se esperar, uma antitelenovela, desprovida de ação e com apenas dois protagonistas, quase sempre enclausurados no mesmo cenário e metidos numa discussão sem fim sobre o inferno conjugal. Embora exibida na íntegra por uma emissora não-comercial inglesa e outra norte-americana, pelo mundo afora "Cenas de um Casamento" circulou sob a forma compacta de um filme com 168 minutos, pouco mais que a metade da metragem original.
Como os cortes foram feitos pelo próprio autor, ninguém chiou. A versão em vídeo a caminho de nossas locadoras não é a televisiva, mas a que assistimos nos cinemas 19 anos atrás.
Recém-saído de uma relação de cinco anos com a atriz Liv Ullmann, Bergman resolveu exorcizar em público as suas reservas em relação à vida a dois. Para ele, há algo na instituição do casamento que azeda o amor e fermenta o ódio. Outras obras de sua autoria tocaram nesse nervo, mas nenhuma o fez de modo tão sistemático e despojado.
Seu litigioso casal —Johan (Erland Josephson), 42, e Marianne (Liv Ullmann), 32— pertence a uma dinastia teatral que remonta ao Strindberg de "Dança da Morte", ao Ibsen de "Casa de Bonecas" e passa pelo Albee de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?". Aparentemente felizes após dez anos de vida em comum, sucumbem um dia à urucubaca conubial. Ele se apaixona por uma aluna e avisa que está saindo de casa.
Como a maioria das mulheres, Marianne se comporta como mãe, amiga, filha e amante. Na última noite em que passam juntos, como marido e mulher, ela encarna, sucessivamente, todos esses papéis. Johan não se cansou dela, mas da vida organizada, selada, sem saída que levam. "A falta de oxigênio nos sufocou", diz ele, que, no fundo, se cansou de si mesmo, do seu modelo de homem. Quer ser outro, um jovem apaixonado, de preferência por alguém que desperte sua turbulência poética.
Com a câmera quase sempre fechada em cima de dois extraordinários atores, Bergman desenvolve duas reflexões simultâneas: uma sobre o casamento (com seus lero-leros burocráticos, seus bocejos, suas cobranças, seus silêncios, seus ultimatos, suas rusgas e suas convulsões) e outra sobre a melhor maneira de representá-lo na tela após tantas décadas de banalidades e clichês. A melhor maneira, para ele, é através da palavra, como na psicanálise. Seu filme é um psicodrama, cujo falatório pode provocar claustrofobia visual e auditiva nos espectadores acostumados a modelos mais convencionais (e arejados) de dramaturgia.

Vídeo: Cenas de um Casamento
Diretor: Ingmar Bergman
Elenco: Liv Ullman e Erland Josephson
Distribuição: Concorde (tel. 011/ 857-7553)

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