São Paulo, quinta-feira, 16 de março de 1995
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Heroísmo sobrevive na arte do Wooster Group

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que mais impressiona no Wooster Group é a sua capacidade de sobreviver. Essa formação, que hoje se chama de Wooster Group, vem do Performance Group, liderado, nas décadas de 60 e 70, por Richard Schechner. Na época, Schechner era aquele que dividia as glórias do teatro dito "revolucionário" com Julian Beck e Joe Chaikin. Só que sua proposta de revolução era inteiramente no estilo do que estava acontecendo na Europa, fundamentalmente diferente das questões americanas da época.
A Europa sempre respondeu às necessidades formais com longas e demoradas crises intelectuais. Depois da Segunda Guerra Mundial, o que restava de sua classe artística ficou décadas paralisada com as questões colocadas pela vasta adesão de sua cultura ao fascismo e não saía de um ciclo vicioso de uma revolução calcada em velhas fórmulas de reestruturação social.
Na América, contudo, a coisa foi diferente. Aqui foi o lugar que saiu pro berro, pro desbunde, para a cor e a justaposição de formas que, em princípio, não se uniam segundo os preceitos europeus. O Frankenstein americano quebrava o laboratório e já saía perseguindo qualquer um para obter sua revanche.
A cultura americana é, nitidamente, uma cultura de ação. O cinema americano é a expressão mais clara disso e, infelizmente, ainda existem intelectuais lobotomizados pelo assim chamado "fantasma do imperialismo americano" que não conseguem enxergar as entrelinhas de como a ação americana foi tomando forma, enquanto a arte européia estagnava em questões tão profundamente equacionadas à impotência ética e artística.
O "action movie" e o "action hero" são criações míticas de uma época, assim como Medéia e Electra também o são. Se são triviais e superficiais, Warhol deu orgulho e autocrítica a essa superficialidade, pois de nada adiantou a "grossa" camada erudita européia quando os judeus berravam nos campos de concentração. A "grande" cultura européia cometeu as maiores atrocidades primitivas em muitos séculos.
Batman e Superman são criaturas tão espessas quanto qualquer herói clássico, e suas qualidades começam onde os defeitos dos clássicos terminam. De qualquer forma, para se entender o teatro americano, precisa-se entender o cinema americano. E a obsessão com a ação é uma resposta à inércia da arte européia, é uma resposta do novo ao Velho Mundo.
Schechner era daqueles que achavam que, para legitimar o ato da criação americana, era necessário se curvar perante a velha cultura. Achava que montar "O Balcão", de Genet, ou fazer adaptações de tragédias gregas iria sofisticar e politizar sua platéia. Infelizmente para ele, a platéia estava mais a fim de ouvir um enorme berro de independência, ao som de uma guitarra elétrica e uma maquiagem decadentemente punk.
Se a preocupação de Schechner era sair do coloquialismo naturalista de O'Neil, Odets e Tennessee Williams, a de todos os outros criadores de teatro também era. A América caía no desbunde. O Living Theater, de Julian Beck, berrava anarquias e tomava as ruas de Nova York. A cidade havia virado uma grande festa eletrizante, explodindo em experimentalismos em todas as áreas.
O Festival de Woodstock acontecia a duas horas daqui. No La MaMa e no Café Cino, Sam Sheppard, Lanford Wilson, Wilford Leach e Andrej Serban procuravam o "novo teatro americano". Joe Chaikin havia acabado de defectar do Living Theater e criava o seu Open Theater. Todos iam na direção de uma independência, uma libertação das influências européias.
A forma de dizer um texto sofreu mudanças radicais. Palavras da língua inglesa sofreram transformações radicais. O ator tomava formas mais esculturais, menos dia-a-dia, e o "personagem" se transformava numa criatura sem barreiras etárias ou temporais. Mais que qualquer outra coisa, o teatro americano procurava respirar e queria se pintar com as cores recém-inventadas da cultura pop.
Enquanto isso, Richard Schechner se perdia num teatro altamente didático que visava educar sua platéia, sob o ponto de vista de uma nova concepção social. As peças perdiam tudo o que havia de lúdico, e as encenações passavam a ser verdadeiras aulas de postura social, assim como Boal o fazia no Brasil. O problema é que a cidade acordava de algumas décadas de inocência e embarcava na decadência.
Andy Warhol tomara conta da cidade. Rauschenberg e Lichtenstein davam sequência ao "americanismo". Warhol, aliás, já tinha "abandonado" a arte e assinava os filmes de Paul Morrisey. Jimmy Hendrix tinha achado no som das bombas que caíam sobre o Vietnã uma nova forma de representar o hino americano.
A sociedade pop explodia, literalmente. E, no meio disso, um chato chamado Richard Schechner tentava ensinar aos americanos como se comportar nos moldes de uma Alemanha. Schechner chegava a entregar folhetinhos, suplementos lexicográficos, para a platéia na entrada do teatro.
Resultado: acabou o Performance Group. Mas de dentro dele saíram duas pessoas interessantíssimas que decidiram manter o endereço e parte da companhia. Estamos em 1980. Elizabeth LeCompte e Spalding Gray levam a companhia na direção da onda de experimentalismo que ainda assola Nova York.
O endereço é uma garagem na Wooster Street, entre Broome e Grand Street, no coração do SoHo. Em um lado da cidade, a companhia Mabou Mines juntava mídias; vídeo, bonecos, música. Seu mentor, o diretor Lee Breuer, era, e até hoje é, um apaixonado por teatro de bonecos. Suas peças foram tomando essa forma. Por outro lado, Robert Wilson já era o marco absoluto e colocava no palco suas longuíssimas e deslumbrantes visões, em parceria com Philip Glass.
Wilson, o mais radical, consolidava a "departure" total do teatro convencional que influenciou dezenas, entre eles Elizabeth LeCompte. Wilson havia transformado o teatro experimental dos anos 70 numa fusão que unia todas as culturas, uma espécie de jornada Nô e surreal. Sua calma e delicadeza cênica haviam influenciado decisivamente a maneira como o "diretor" via o teatro e como o teatro via o diretor.
O texto havia sido fracionado ou eliminado de vez e os aspectos periféricos do teatro tomavam o centro do palco. Isso tudo empurrava a intimidade formal da figura do diretor para o centro da questão. O diretor virara o criador, o escultor, o materializador de seus sonhos e pesadelos, através de qualquer forma que se prestasse a isso.
Se Wilson encantava e paralisava a platéia, o Mabou Mines a titilava com pequenas doses de intromissão do cinema no teatro. Enquanto isso, Richard Foreman, criador do Onthological Hysterical Theater, torturava sua platéia com sons repetitivos que lembravam um boliche astral e uma luz na cara de cegar qualquer mortal.
Foreman inventava posições físicas egípcias e formava uma estética mais parecida com a de judeus hassídicos, tudo para fugir do naturalismo, do realismo até então perseguido pelo teatro americano, e levar o seu público para o cerne da sua questão obsessiva e formal.
O Wooster Group embarcou pela viela da sátira, da pungência e de pequenas doses de subversão. A linguagem do grupo é, talvez, a mais nova-iorquina de todos os grupos, principalmente porque sua expressão é calcada na ironia, no "blaséismo" típico de um morador de uma grande metrópole que tem tudo e ri da província e de seus pequenos deslumbramentos e crenças.
Nas mãos do Wooster Group, a cultura americana ria de si mesma, vacas sagradas dessa cultura, como a divisão racial e étnica, passavam a ser assuntos pantomimizados e abusados em sua escritura cênica. Se o cinema entrava no teatro através do Mabou Mines, a linguagem falsa e moralista da televisão entrava no teatro do Wooster.
Spalding Gray, um dos seus formadores, junto com LeCompte, foi se destacando do grupo e começou a se apresentar em solos, como "Swimming to Cambodja", "Gray's Anathomy" ou "Monster in the Box".
Gray seguiu a linha de outro integrante do grupo, Willem Dafoe, e começou a participar de inúmeros filmes, como "Os Gritos do Silêncio" ou "O Jornal", mais recentemente. A companhia que restava, liderada por LeCompte e Ron Vawter (recentemente morto em pleno vôo entre a Europa e a América), criava espetáculos que têm uma espécie de paralelo no Brasil: o mundo de Hamilton Vaz Pereira.
Os espetáculos são rigorosamente formais. A luz varia pouco. Os atores estão acoplados a um sistema sofisticado de controle de som e de vídeo. Essas formas interagem melhor aqui do que em qualquer outro grupo de teatro. Qualquer ação é necessariamente fragmentada e vista por vários ângulos. LeCompte não tem o menor problema em usar clichês e fazer chacota deles.
O último "leitmotiv" parece ser uma certa ridicularização da estética japonesa. Nisso também vai uma enorme crítica, evidentemente. Não existe a preocupação de "encantar" a platéia ou de deixar que ela se emocione. O "display" de técnica é deliberadamente aparente, como se quisesse expor o interior da máquina durante a performance.
Evidenciamos a criação do feto e vemos os vários estágios de crescimento dele, mas não nos emocionamos nunca com o fato de ele alcançar a "vida". A linguagem do Woster Group é a única que sobreviveu ao massacre do final dos anos 80 e aos anos 90.
O Mabou Mines não existe mais, virtualmente. Richard Foreman ainda produz, mas é literalmente exilado no fundo de uma igreja, a Saint Marks. Wilson vive quase oito meses por ano exilado nas casas de ópera da Europa.
Numa conversa informal de alguns dias atrás, Wilson me dizia que achava que nunca mais conseguiria plantar um pé aqui. O Wooster Group nunca deixou de ter esse pé plantado aqui. Se existe heroísmo em arte, sem dúvida nenhuma, o Wooster Group é o super-herói contemporâneo em pausa de almoço. Pelo jeito, eles ainda estarão produzindo quando os efeitos da criptonita já tiverem passado.

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