São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
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Novelas de Otto Lara Resende misturam infância e catolicismo

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

É prova de que Otto Lara Resende (1922-1992) era grande escritor a dificuldade que o leitor terá em garimpar as influências de seu estilo em "A Testemunha Silenciosa", livro que a Companhia das Letras lança no dia 27.
O texto de Otto é inconfundível ao extremo. Reescrevia adoidado, como se sabe; e, ao que parece, quanto mais reescrevia, mais particular o tom se tornava. De fato, "A Testemunha Silenciosa" reúne duas novelas que foram mais peneiradas que regato mineiro.
A primeira, que deu o título ao livro, se chamou "O Carneirinho Azul" e pertenceu ao volume "O Retrato na Gaveta" (1962) antes de ser completamente reescrita.
A segunda, "A Cilada", fez parte de um livro de vários autores, "Os Sete Pecados Capitais" (1964), sofreu alterações ao integrar "As Pompas do Mundo" (1975) e, entre 1975 e sua morte, foi remexida diversas vezes.
Como observa Humberto Werneck em texto na contracapa do livro, tanto reescrever só quer dizer uma coisa: "Otto era incapaz de pingar um ponto realmente final".
Nada surpreendente para quem leu o romance "O Braço Direito", obra maior de Otto, reeditado pela Companhia das Letras em 1993. Também obsessivamente reescrito, "O Braço Direito" reverbera na primeira novela do livro. Otto, em suma, era a maior angústia da influência de Otto.
A novela ecoa o tom do romance: parece um sussurro contínuo, uma confissão ao mesmo tempo tímida e sugestiva, uma confissão para um confessionário vazio. Com tudo que isso pode ter de patético e cândido.
Se o texto de "O Braço Direito" era como que um diário do zelador de um orfanato, "A Testemunha Silenciosa" nos dá a voz de um garoto, na mesma cidade, Lagedo (MG), igualmente alheio (mas não imune) às grandes mudanças político-sociais "lá fora" (a Revolução de 30, no caso).
Personagens vão passando em sua vida —Dona Zélia, Sanico, seu pai, seu avô, sá Carmela, Dulce— e o que nos fica é a expectativa de Juca —"um jeito de adiar a chegada do carneirinho, sem que sentisse o travo da decepção".
Algumas cenas são magistrais, como a que descreve a paixão dele por Rita Maria, mulher mais velha, que "se melomovia" provocando no garoto "uma febre de promessas e certezas"; ou outra em que ele é levado por uma má companhia a sufocar um gato numa lata de lixo. Quase tudo, escrito em discurso indireto. Nada de narradores oniscientes em Otto.
"A Cilada", a meio caminho entre conto e novela, descreve um homem absurdamente avarento, que só fala com clichês e rótulos, e que um dia se vê em maus bocados e não tem a ajuda de ninguém. Castigo divino? Antes de morrer, "num último fiapo de lucidez", se lembra de "uma grande manga coração-de-boi". Eis a ficção de Otto concentrada numa frase.
São como versículos escritos duas oitavas abaixo da Bíblia, coisa de quem leu Agostinho, Pascal, Bernanos, isto é, de quem alimenta sua fé de dúvidas. Não se fala em Otto sem falar em graça.
O inglês W.H. Auden escreveu num poema sobre o escritor francês Paul Claudel: "For God shall pardon Paul Claudel/ for writing so well" (sem a rima: Pois Deus deverá perdoar Claudel/ por escrever tão bem). Otto, certamente, está perdoado ad aeternum.

Livro: A Testemunha Silenciosa
Autor: Otto Lara Resende
Preço: R$ 13,50
Lançamento: dia 27

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