São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'O Livro de Jó' questiona Deus nos dias de hoje

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

É quando o primeiro dos três amigos de Jó questiona da razão de Deus para o sacrifício de um homem aparentemente sem pecado, como Jó. Há razão, há motivo, insiste o amigo. O motivo está escondido, Jó não quer ver, mas está lá em seu interior. Mas não está.
Jó perdeu filhos, tudo o que tinha de material e agora está perdendo o seu próprio corpo, carregado de chagas, mas não há por quê. É uma metáfora, uma metáfora para a Aids e para a fé, nos tempos que correm, mas que vale por uma revelação.
Uma revelação que acaba por vencer as idiossincrasias do diretor, um jovem de grande sensibilidade como Antônio Araújo, mas que se deixa levar pela estrutura, pela exterioridade.
É o que acontece em boa parte de "O Livro de Jó", a montagem, com as suas exigências físicas, de efeito óbvio, como o pendurar-se em janelas e o subir-e-descer de escadas de um hospital —em prejuízo de outras exigências, essenciais, como a interpretação.
Todo o início com a provocação de Deus pelo demônio se perde, entre ossos e carne crua e atores que parecem estar mais atentos ao seu equilíbio do que ao que estão falando.
Mas entra a poesia e tudo muda. A cena de Jó com o primeiro amigo, interpretado por Míriam Rinaldi, uma atriz capaz de uma compaixão comovente, arrebatadora, é a chave que abre a segunda e melhor metade de "O Livro de Jó". É o amigo que tenta convencer Jó de seu pecado. É a chave para a piedade, no espetáculo.
É a chave também para tirar de Mateus Nachtgaele, o intérprete de Jó, os seus momentos altos no espetáculo. Antes, ele geme, chora, bufa em excesso, sem a necessária contrapartida de emoção.
Há um descontrole geral da interpretação. Deus, por exemplo, um exemplo extremo, exigia um ator mais expressivo do que Sérgio Siviero.
Também a mulher de Jó —mas aí talvez seja mais o caso de um equívoco na adaptação. Transformar a mulher em porta-voz da razão não só rouba —ou tenta roubar— de Jó a dúvida sobre a existência de Deus, não só empobrece Jó, como cria uma contradição paralela artificial e sem fôlego.
"Deus está morto", diz e repete a mulher chata de Jó, tão chata que quase desmoraliza a própria afirmação, para o espetáculo.
Em compensação, existe o diabo e depois o segundo amigo interpretados pelo firme Vanderlei Bernardino. Existe também o coro de Flávia Campos, Giovana Sanchez, Camila Lordy, Magda Pucci e José Eduardo Areias, com as músicas circulares, repetitivas, músicas originais de Laércio Rezende, que causam uma espécie de encantamento no espectador.
São a moldura perfeita para a poesia e a temática, mais presente, mais próxima do que em "Paraíso Perdido", a direção anterior de Antônio Araújo, com a mesma companhia. "O Livro de Jó" fala de um Deus de hoje, para o homem do fim do milênio.

Título: O Livro de Jó
Adaptação: Luís Alberto de Abreu
Quando: Quinta a sábado, às 21h; domingo, às 20h
Onde: Hospital Umberto Primo (al. Rio Claro, 190, Bela Vista, tel. 289-1664)
Quanto: R$ 12,00 quinta, R$ 15,00 sexta a domingo

Texto Anterior: França e NY são roteiros
Próximo Texto: CineSesc mostra os melhores de 1994
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.