São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Bebia 1 garrafa de tequila em 3 horas'

DA REPORTAGEM LOCAL

Carla T., 23, parece uma típica garota dos Jardins. Trabalha numa "surf shop", corre no Ibirapuera. Em 93 não era assim. Vivia numa favela atrás de cocaína e álcool.
*
"Bebi pela primeira vez com 13 anos. Estudava num colégio de freiras nos Jardins e antes de ir para a aula tomava cerveja com comprimido. Às 8h já estava chapada.
Com 14 anos conheci cocaína. Minha mãe sempre me criou solta. Eu frequentava boates punks, Madame Satã, Rose Bom Bom e bebia a noite inteira. Tomava uma dez cervejas e não caía.
Se não tivesse alcóol eu tremia, enrolava a língua e ia parar no hospital. Saía e continuava bebendo. A loucura do álcool é a pior loucura. Dá uma puta depressão. Tinha que cheirar para passar.
Uma vez fui sozinha e tentaram me estuprar. Quanto me encostaram num muro, um amigo chegou.
Tinha amigos ricos, que tinham farinha (cocaína) e bebida, mas não conseguia conviver com eles. Gostava da favela. Lá era o único lugar onde me tratavam bem.
Eu sempre trabalhei, mesmo nas piores fases. Era vendedora na G (loja de roupas) e levava cerveja na bolsa para tomar no banheiro. Álcool faz mais falta do que pó.
Com 21 anos rodei na polícia e fui para a irmandade, no NA (Narcóticos Anônimos). Fiquei dois meses sem beber e cheirar, mas saía com as mesmas pessoas.
Um dia minha mãe foi viajar e apareceu um amigo carregado com tudo. Voltei a beber que nem louca. Já não me sentia uma viciada, me sentia uma alcoólatra.
Bebia uma garrafa de tequila em três horas, sozinha. Daí eu cheirava para passar. Quando estava cheirada voltava a beber. Comecei a beber depois de acordar. Tomei álcool Zulu com suco de laranja.
Fui parar cinco vezes no hospital com princípio de overdose. Parava de cheirar e voltava a beber.
Foi a tentativa de estupro que me acendeu a luz. Percebi que tinha virado alcoólatra, viciada em farinha. Uma vez fiquei dois dias trancada numa boate, bebendo e cheirando, bebendo e cheirando.
Um porteiro tentou me agarrar e veio na cabeça a imagem da tentativa de estupro. Decidi que não ia morrer, que queria viver.
Fiquei oito meses internada numa fazenda feminina. Trabalhava na enxada, carpindo um puta mato, fazia comida, terapia.
Faz um ano e um mês que parei. Quando fez um ano deu uma puta vontade de voltar. Fui para a favela e bateu um desespero. Voltei para casa e fiquei rezando. Não posso voltar. Sei que vou morrer.
Tenho trocado o álcool e pó por comida e sexo. Tem dias que como 15 sorvetes. Se não tiver comida faço sexo. Minha mãe diz que sou ninfomaníaca. Às vezes durmo com alguém e acordo chorando. Parece que eu bebi.
Posso ir para a praia com um puta gato ou ir para uma clínica ajudar dependentes. Vou para a clínica porque sei que Deus vai devolver minha sanidade. Preencho esse rombo deixado pela bebida e pelo pó com espiritualidade e esporte. Corro meia hora todo dia.
Acho que eu bebia para anular a morte do meu pai. Ele era alcoólatra. A grande dificuldade hoje é lidar com meus sentimentos: amor, raiva, tesão. Não me sinto dez. Se perder o medo, volto a beber."

Texto Anterior: 'Lúcia chorava sem lágrimas'
Próximo Texto: 'Parei com coca e caí no uísque'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.