São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Três olhares sobre o processo Dreyfus

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O capitão do Exército francês Alfred Dreyfus (1859-1935) foi desembarcado a 12 de março de 1885 numa ilha de 3.000 metros quadrados, no litoral da Guiana, sintomaticamente chamada de Ilha do Diabo. Começava a cumprir, há cem anos, a pena de deportação por um crime que não cometeu.
O "Affaire Dreyfus" é um ponto de referência obrigatório de muitas histórias que se sobrepõem umas às outras.
Há a história do anti-semitismo (Dreyfus era judeu). Há também a história da Europa e da tensão entre França e Alemanha, que já haviam se enfrentado em duas guerras e teriam ainda duas outras pela frente (Dreyfus foi acusado de entregar segredos militares à embaixada alemã em Paris).
Há a história da imprensa, que pela primeira vez liderou na França um amplo e preconceituoso movimento pela condenação do oficial "traidor". Há a história da esquerda francesa, bem mais ambígua quanto ao caso que o quiseram crer seus cronistas oficiais.
Há, por fim, a história da "intelligentzia" (Emile Zola e outros), que se empenhou pela correção do erro judiciário e se machucou com a agressão movida pelos porta-vozes das razões de Estado.
O curioso é que os cem anos do "Affaire" tenham passado, fora da França, relativamente desapercebidos. Em termos de anti-semitismo, por exemplo, Dreyfus é um exemplo ao mesmo tempo mais didático e menos explícito que o cinquentenário da liberação de Auschwitz. Ocorreu num país que mantinha fértil o útero da "besta imunda", apesar da liberdade de imprensa e do pluralismo partidário da Terceira República.
No Brasil, são três os lançamentos que fornecem uma angulação diferenciada do "Affaire".
Há em primeiro lugar as 700 páginas de "O Caso Dreyfus", do historiador francês Jean-Denis Bredin, que a Scritta traduz de um original publicado há dois anos e que, a exemplo dos sete volumes publicados a partir de 1901 por Joseph Reinach, tem o propósito de fornecer uma linha factual definitiva às múltiplas investigações.
Em seguida, "O Processo do Capitão Dreyfus", a primeira das Cartas da Inglaterra que Rui Barbosa (1849-1923), exilado em Londres, publicou no "Jornal do Comércio", em 1895.
Aplaudir retrospectivamente Rui tem um quê de anacronismo bacharelesco. Mas seu texto, reeditado pela Giordano, faz com inegável brilhantismo o percurso entre o plano político e o plano das aberrações processuais que, em dezembro de 1894, permitiram a condenação do capitão francês.
Por fim, a ser lançado ainda pela Imago, os "Diários Completos do Capitão Dreyfus", escritos durante os cinco anos de degredo na Ilha do Diabo e prosseguidos após sua segunda condenação.
Tanto o panfleto de Rui quanto os "Diários" são complementados por textos de Alberto Dines, por certo o brasileiro mais atento às lições políticas potencialmente contidas no "Affaire".
"O anti-semitismo científico teve em Dreyfus a primeira oportunidade para experimentar a metodologia da virulência e, nos dreyfusards (simpatizantes da causa do capitão), o primeiro exercício para enfrentá-lo", afirma ele.
Em termos factuais —e é o que demonstra o livro de Jean-Denis Bredin— o Exército possuía da França uma visão de grandeza comprometida pela derrota face aos alemães, em 1871, e pela democracia republicana, que favorecia a ascensão de estratos alheios à idéia comumente homogênea (e cristã) de nação.
Não foi por acaso que coube ao Estado-Maior do Exército o papel de vilão na farsa jurídica que vitimou o capitão judeu. Agindo de comum acordo com o serviço secreto, coube-lhe a missão de forjar documentos e de acobertar o verdadeiro espião, o capitão Walsin-Esterhazy, cujo desmascaramento colocaria abaixo a fragilidade do processo judicial.
A farsa corroeu de tal forma a instituição militar que o primeiro-ministro Charles Dupuy exporia em 1898 o miolo da questão de forma patética: "Mas quando salvarmos Dreyfus, como salvaremos o Exército?" O resultado viria, mais tarde, sob a forma de expurgo da oficialidade comprometida com o projeto monarquista.
No aparelho do Estado, muitos se deixaram enganar, sem que, no entanto, a descoberta do engano colocasse o aparato processual na direção da justa reparação. A França já estava cirurgicamente dividida entre duas facções e os antidreyfusards detinham o poder.
A ruptura desse quadro estratificado teve como agentes os intelectuais (a palavra surgiu naquela época), sobretudo Emile Zola (1840-1902), então o maior romancista vivo da França. Em janeiro de 1898 publicou na primeira página do jornal "L'Aurore" sua carta-panfleto "J'Accuse" (Eu Acuso).
Seu propósito era responder processo por difamação ao presidente da República e relançar a inocência de Dreyfus no circuito do Judiciário. Não funcionou. Zola foi por duas vezes condenado e precisou se exilar na Inglaterra.
Alfred Dreyfus, no entanto, era mantido incomunicável, ignorava o quanto seu nome catalisava a França e —por meio da imprensa— recantos perdidos no mapa múndi, como São Luís do Maranhão, onde um grupo de senhoras se cotizava para comprar um presente para sua mulher, Lucie.
Os "Diários" que ele escreveu trazem uma tonalidade menos polifônica e épica que as discussões políticas provocadas por seu caso. É um oficial que insiste na reconquista de sua honra, ritualmente ferida pela cerimônia pública de degradação a que foi submetido antes de embarcar para a Guiana.
Acredita que a República é visceralmente generosa e o Exército justo. Escreve sucessivas cartas ao presidente e ao primeiro-ministro que ficarão sem respostas.
Anos depois, já reabilitado, escreveria com certa singeleza: "Sou apenas um oficial de artilharia que um trágico erro judiciário impediu de seguir o seu caminho. O Dreyfus símbolo da justiça não é meu, foram eles que o criaram."

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