São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 1995
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Diretora inglesa leva Shakespeare à Bósnia

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Katie Mitchell, 30, é feminista, socialista e não tem medo de misturar teatro com política. Mais nova invenção da Royal Shakespeare Company, ela estréia "Henrique 6º" na próxima quinta, em São Paulo. A peça faz três apresentações e segue em turnê pelo país (leia texto abaixo).
"Henrique 6º" é uma trilogia do dramaturgo inglês William Shakespeare que retrata a guerra das rosas, ou a guerra civil da Inglaterra, no século 15. Mitchell montou a terceira das peças da trilogia.
A seguir, entrevista feita por telefone com a diretora, que está em Londres.

Folha - Você diz que quer peças que façam as pessoas pensaram, que o seu trabalho é um pouco "cool" (frio) exatamente porque são as idéias que interessam. Isso vale para "Henrique 6º", que você está trazendo para o Brasil?
Katie Mitchell - Sim, vale. Nesta peça nós estamos tentando lidar com a questão toda das razões e dos fatos de uma guerra civil. Esta foi a grande idéia inicial, por assim dizer. Ao analisar uma das mais significativas grandes guerras civis que nós tivemos na Inglaterra, historicamente, nós queremos chegar mais perto de um entendimento de outras guerras civis, como em Ruanda ou na Bósnia. Mas não há nenhuma evidência na montagem, em absoluto, de uma guerra civil moderna. A montagem é estritamente século 15.
Folha - O diretor-artístico do teatro National, Richard Eyre, descreve você como uma diretora "inocente, não corroída por uma visão do mundo saturada de cinismo". É o que se pode ver no palco? Você descreveria o seu trabalho como "não corroído por cinismo"?
Mitchell - Hm, eu espero profundamente que não. Acredito que o cinismo é uma doença fatal. Há uma espécie de separação aí. Acho que a coisa chave é continuar tendo sonhos impossíveis. E penso que na montagem... espero que não exista nem um traço sequer de cinismo. Talvez ela seja uma pequena idéia equivocada e talvez ela não alcance exatamente o seu propósito, mas está se esforçando para fazer isso.
Folha - Você compara o apoio dado pela igreja sérvia aos sérvios, na Bósnia, com a alegação de ter o apoio de Deus feita pelos dois lados, na guerra civil mostrada em "Henrique 6º". O que Deus tem a ver com a guerra civil, na Bósnia ou na Inglaterra?
Mitchell - A sugestão é que os dois lados na guerra civil, nas guerras das rosas, na Inglaterra, os dois lados reivindicavam ter Deus do seu lado, na luta. E portanto eles reivindicavam estarem absolutamente certos. É uma espécie de batalha absurda em torno de Deus, por Deus. É completamente absurdo, porque eu não acredito que, fora Henrique 6º, exista um único personagem que realmente tenha fé na peça inteira. Eu imagino que eles usam Deus para validar a carnificina, ou talvez para esconder a carnificina. É o que Deus tem a ver com a guerra civil.
Folha - Você foi à Europa Oriental, à Sérvia, antes de "Henrique 6º". Você usa as viagens, o contato com outras culturas no seu teatro?
Mitchell - Eu procuro entender a minha própria cultura, observando, à distância (ri). Mas viajando eu também vejo o teatro em outros países, além do contraste político, cultural, religioso. O que me interessa são as similaridades e as diferenças entre culturas. Eu tenho um grande interesse por antropologia e história.
Folha - Você dirigiu uma companhia feminista de teatro, na Universidade de Oxford, e descreve a si mesma como uma feminista. Você também fala de "Henrique 6º" como a sua maneira de reagir à guerra civil. Como você vê esta relação entre teatro e política?
Mitchell - Eu sou uma feminista e isso é tudo. Certamente não gostaria de forçar ninguém a ser uma feminista, com meu teatro. Também sou uma socialista, mas não gostaria de forçar ninguém a ser uma socialista, através do que faço no teatro. É claro que a minha visão política influencia o meu teatro, mas espero que não de uma foram restritiva.
Folha - Você se vê como politicamente correta?
Mitchell - Eu não sei o que isso significa mais. É uma frase que neste país, a Inglaterra, tem sido tão desvalorizada, que perdeu o seu sentido. (ri)
Folha - Sobre a peça, você passou por toda a obra de Shakespeare, leu toda a obra, e escolheu uma peça, a sua primeira peça shakespeariana, que não havia sido montada separadamente deste o século 16. O que é que atrai você a estes clássicos "negligenciados" como se diz?
Mitchell - Não é consciente. Não tenho uma lista dos melhores "clássicos negligenciados" de que eu ouvi falar. (ri) É só que acontece, por acaso, de serem essas as peças com as quais, em determinado momento, eu tenho tendência de me dar melhor, as peças pelas quais me apaixono. É uma relação muito íntima que tenho com elas, mas não é consciente. Eu literalmente li todas as peças de shakespeare e a peça que mais amei foi "Henrique 6º, parte 3". O diretor-artístico da Royal Shakespeare Company, quando corri para contar a ele, riu muito. (ri).
Folha - Alguns novos autores, como Tony Kushner ou Brad Fraser, têm uma dramaturgia muito próxima à sua encenação. Por que você não trabalha com novos autores?
Mitchell - Venho dirigindo há apenas quatro anos e meio. Então, foi só que aconteceu de, neste pequeno período, dirigir clássicos. E foi uma combinação do que eu queria fazer e do que queriam as organizações, as companhias para as quais eu trabalhei. Tirei algum tempo, quando estava no teatro Royal Court, para ler novas peças e não achei uma que quisesse apaixonadamente fazer. E eu simplesmente nunca vou dirigir algo que não queira apaixonadamente fazer, porque isso seria desonesto. Penso que seria muito perigoso dirigir uma nova peça só por ser uma nova peça.

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