São Paulo, terça-feira, 21 de março de 1995
Texto Anterior | Índice

Sotheby's põe à venda 597 obras de Man Ray

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

O dadaísmo, 82, está mais vivo que nunca. É o que sugere a expectativa em torno do leilão que a Sotheby's realiza amanhã e quinta-feira, em Londres, de 597 trabalhos de Man Ray (1890-1976).
Fotógrafo, escritor (autor de um livro injustamente esquecido, "Self Portrait", auto-retrato) e pintor americano, Ray foi um dos participantes mais famosos do movimento dadaísta, fundado em Zurique (Suíça) em 1913.
O dadaísmo —a partir da palavra "dada", escolhida aleatoriamente no dicionário— queria a "dessacralização" da arte, encerrada em museus e galerias. Para tanto, lançava mão de objetos cotidianos, tomados ao acaso e colocados em outros contextos. A subversão do uso habitual bastava para criar o significado, na maioria das vezes estranho ou ofensivo.
O movimento nasceu multimídia. Artistas como Tristan Tzara, Hans Arp, Hans Richter, Marcel Duchamp, Max Ernst e outros aplicaram suas anti-regras em cinema, pintura, fotografia, poesia e colagem. Ray esteve em todas.
Agora o dadaísmo vai a leilão. O próprio auê em torno do evento é irônico. Com seus "ready-mades" (objetos já existentes que ganham funções novas), sua grita contra a "arte feita para permanecer" e sua vontade de chocar, o dadaísmo protestava contra a burguesia que taxa valor em tudo, em especial no mercado de arte.
Hoje vende mais que a arte pop, a arte conceitual ou o expressionismo abstrato, por exemplo —que fracassaram nos últimos leilões em Nova York e Londres.
E, sobretudo, é a influência central da arte contemporânea, ou seja, das instalações. Pois estas se valem de objetos reais inter-relacionados em um contexto cênico. Mas custam bem mais e não cabem na sala de visita.
Olhando o catálogo da Sotheby's, as analogias são múltiplas. Os objetos lembram Louise Bourgeois, Bruce Nauman e outros nomes-chaves da arte atual; a semelhança não é superficial, mas extrema. E a influência das fotos na atualidade nem é preciso mencionar. Nada melhor que o frescor do original, portanto.
E há o bônus da surpresa: os peritos da Sotheby's, convidados a visitar em Paris o espólio da segunda mulher de Ray, Juliet Browner, morta em 1991, não esperavam achar muita coisa boa. Encontraram desenhos, peças e fotografias não só em quantidade, mas também em qualidade. Todas as fases de Ray, abrangendo 60 anos de carreira, comparecem.
Juliet, de quem há diversas fotos no leilão, viveu 30 anos com Ray. Bailarina de origem modesta, teve dois filhos, igualmente humildes, a quem a posse dessas obras de May não interessava. Então deram parte ao Centro Georges Pompidou de Paris e parte a leilão.
Os preços não são exagerados. (Gritando e esperneando, o mercado de arte hoje vai sendo obrigado a desinchar, no refluxo dos anos 80.) Na média, as fotos vão de 1.000 a 10 mil libras (a libra vale cerca de US$ 1,50); telas, de 50 mil a 70 mil; peças, de 6 mil a 20 mil; e desenhos, de 400 a 2.000.
Há exceções, claro, e nelas se concentram as apostas. A mais cara é a tela a óleo "Le Beau Temps" (1939), estimada entre 600 mil e 800 mil libras, mas pode ultrapassar. O retrato solarizado de Marcel Duchamp (1930), assinado por Ray com caneta-tinteiro, está entre 20 mil e 30 mil.
Mas há peças famosas a bom preço, como uma das cópias de "Motivo Perpétuo" (com 22 cm de altura), que foi avaliada entre 6.000 e 8.000 libras.
E se pode comprar um retrato do escritor americano Ernest Hemingway por 1.000, um do pintor espanhol Pablo Picasso por 4.000 e um do escritor irlandês James Joyce e um —belíssimo— do poeta Jean Cocteau por 6.500 libras (estimativas médias). E há as mulheres, como Lee Miller, sua assistente, que Man Ray registrou sedutoras como ninguém.
Ciente da tentação dessas ofertas, a Sotheby's desviou a ênfase na divulgação para seus objetos e quadros. Mas, claro, aqueles não têm a inteligência dos de Duchamp e estes não têm a inventividade dos de Ernst, por exemplo.
Mesmo assim, há peças célebres como "É Primavera", "Ferro Vermelho" e "Peso-Pena".
Ray era sobretudo um fotógrafo soberbo —em especial, retratista. O resto de suas atividades, com exceções de brilho, é secundário diante desta. Curiosamente, Ray fez de um formato convencional, "clássico" (o retrato), a moldura de suas obras-primas. Ele mesmo apreciaria mais esta ironia.

Texto Anterior: Wooster lembra academia da vanguarda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.