São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Mercado X opinião pública

MARCELO LEITE

Um espectro ronda o Brasil. É "o mercado", entidade que pode arruinar reputações, bancos, nações inteiras. É por seus humores que se pautam os governantes, o Congresso, a imprensa. Dentro em breve, todo o país.
Engana-se, por exemplo, quem acredita que o protagonista da semana jornalística tenha sido o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Foi o mercado, seu tutor. Era para as reações do mercado que atentavam todos, após os depoimentos de Arida no Congresso, convocado que foi para esclarecer as renitentes suspeitas de vazamento de informações, na traumática reorientação da política cambial.
E o mercado, pasme, reagiu com benevolência. Arida pouco explicou, mas não faltaram análises de jornalistas prontos a acalmar o mercado dizendo que ele se saiu muito bem, sim senhor.
No Senado, nem precisou fazer força. Submissos às razões do Executivo, senadores da República se prestaram terça-feira ao papel de vacas de presépio.
Na quarta-feira, deu um novo cinco-minutos do mercado. O senador petista sergipano José Eduardo Dutra apareceu com um documento surrupiado por algum correligionário, uma daquelas denúncias destinadas a gerar mais calor do que luz.
Os extratos, parciais, reabriam a história do vazamento para o BBA, banco de Fernão Bracher, ex-presidente do BC e amigo de Arida. Corre-corre, reuniões, nota oficial. Tudo foi providenciado para acalmar os ânimos. Do mercado.
Na Câmara dos Deputados, quinta-feira, o presidente do BC mudou a tática. Partiu para o ataque. Defendeu com unhas e dentes sua honra pessoal, como se fosse apenas ela, ou ela principalmente, que estivesse em jogo.
Acusou o senador petista de falta de patriotismo, de acobertar crimes e de ignorância (sobre o mercado). Mas silenciou quando os deputados Delfim Netto e Conceição Tavares, segundo relato da Folha, apontaram seus erros enervantes (para o mercado) na introdução das enigmáticas bandas cambiais.
(O primeiro a falar em vazamento, e portanto a pôr sob suspeita a honra de que Arida se mostrava tão zeloso, foi precisamente Delfim Netto. Isso não impediu o presidente do BC de abraçar o deputado do PPR, foto escolhida para o lugar de destaque na primeira página da Folha de sexta. Sem dúvida, um flagrante do vale-tudo para acalmar... o mercado.)
A maioria dos jornais alardeou, nas edições de sexta-feira, a vitória governamental: "Arida rebate suspeita de vazamento no BC"; "Arida parte para o ataque e vence batalha na Câmara"; "Arida aponta manobra contra o Real"; "Arida depõe e tranquiliza mercado". Não importa aqui quem deu qual manchete; é óbvia a coerência dos pontos de vista.
Só a Folha desafinou o coro dos contentes, mas saindo pela tangente: "Arida anuncia mais freio na economia". Não deixa de ser uma forma de tirar o homem da reta. Mas, como o jornal tem por hábito dar uma no cravo e outra na ferradura, acertou em cheio com a publicação de um quadrinho na pág. 2-5, sob um título que fez época durante o Collorgate: "Perguntas sem resposta" (veja reprodução).
É isso que compete à imprensa fazer, as perguntas certas. Sem medo de cara feia, de terremotos ou de peripaques do mercado.
Se jornais e revistas falharem nessa missão, poderão ser perfeitamente substituídos pelo sistema eletrônico de informações do BC. Aí então, quem sabe, a opinião pública poderá dormir em paz. Enquanto o mercado pega fogo.

Furos
Há seis semanas, na coluna "OAS, ACM, FHC", queixei-me da carência de furos importantes nas páginas da Folha. Esta semana foi de fartura. Os leitores do jornal puderam ler duas denúncias exclusivas e importantes: o apoio do governo petista do Distrito Federal a uma manifestação-monstro contra a reforma constitucional, na quinta-feira, e a revelação do esquema de financiamento do presidente da central Força Sindical, Luiz Antônio de Medeiros.
No primeiro caso, foi uma bordoada na administração de Cristovam Buarque, o ex-reitor da UnB que virou governador. De início, ele negou ter conhecimento da compra de 10.500 marmitas avalizada por Eurípedes Camargo, secretário de Participação Popular e Inclusão Social do Distrito Federal, mas depois voltou atrás.
Buarque agora afirma que vai pagar a conta, sim, mas só se não for ilegal. Quem viver, verá.
A outra denúncia atingiu um defensor da reforma constitucional. Foi formulada por um personagem dúbio, o ex-assessor da Força Sindical Wagner Cinchetto, mas reuniu uma quantidade acabrunhante de detalhes sobre as relações promíscuas do sindicalista de resultados com empresários.
À primeira vista, nada há de ilegal ou irregular nas doações. Medeiros se disse "aliviado" com a revelação, porque Cinchetto seria um chantagista. Nem o mercado deve ter acreditado em seu alívio.

Guacamaios X araras
A semana teve também uma mancada constrangedora.
Na segunda-feira, a seção GeoDados do caderno Folhateen —um quadro que o jornal compra da National Geographic Society dos EUA— tinha por tema um bicho de que nunca ouvira falar, "guacamaio".
Fiquei intrigado. Do hábitat à descrição do bicho, da alimentação aos desenhos, era um retrato acabado do que brasileiros chamam de araras.
Levantei a hipótese de que tivesse ocorrido erro de tradução, em minha crítica interna da edição. Prontamente, recebi resposta peremptória da editoria:
"A tradução está correta. Não existe uma palavra para 'guacamayos' em português, daí a opção da editoria por mantê-la no original, apenas trocando o y por i. Para a tradução, foi consultado o 'Dicionário de Espanhol-Português', de Julio Martínez Almoya:
'Guacamayo, s.m. zool. Espécie de papagaio da América, com plumagem vermelha, azul e amarelada e cauda muito comprida.'
"No mesmo dicionário, de Português-Espanhol, temos:
'Arara, s.f. ornit. Arara, ara, gênero de aves prensoras (...)'."
Retruquei que não tinha como avaliar a resposta, naquele momento, mas que iria checá-la.
Nem precisei procurar. Na quarta-feira, recebi uma carta indignada da ornitóloga Martha Argel, 33, pesquisadora da Unicamp. Ela espinafrava o jornal pelos erros, fornecendo até a denominação científica e o nome popular, no Brasil, dos "guacamaios" (um termo usado na Venezuela). O suposto "guacamaio de cor azul e amarela", por exemplo, seria a velha arara-canindé.
Pedi novos esclarecimentos à Redação, mas me abstenho de reproduzi-los. Digo apenas que, de 13 linhas, menos de uma foi usada para reconhecer o erro. O restante se esforça por apontar erro na carta da leitora, como se fosse este o texto sob escrutínio.
Em tempo: para apresentar a segunda resposta ao ombudsman, a editoria enfim se dignou buscar ajuda de especialistas (junto ao Zoológico de São Paulo). Se tivesse tomado essa providência no tempo devido, teria poupado seus leitores de um erro crasso.

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