São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Ásia para cucarachos

GILSON SCHWARTZ; NELSON BLECHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

NELSON BLECHER
A América Latina não tem saída a não ser inspirar-se nos asiáticos para remodelar seu destino. A elite em países como a Coréia do Sul investiu, criou bases para o desenvolvimento e assim atraiu os capitais estrangeiros. Já nos trópicos a opção tem sido financiar o consumo e mergulhar em crises recorrentes.
Quem manda o recado, de seu retiro em São Roque (42 km a oeste de São Paulo), uma chácara de estilo europeu onde vive há dez anos, desde que o coração ganhou uma ponte de safena, é o editor e economista Geraldo Banas, 82.
Cercado de anuários e um punhado de obras que esquadrinham a cena política e econômica internacional, Banas reescreve a história da América Latina. A idade joga a seu favor: ajuda a destilar a sabedoria da experiência acumulada.
Em meados do ano passado, quando o México ainda era incensado como o triunfo do modelo modernizador neoliberal, Banas trabalhava nos originais de um livro, ainda inédito, no qual desmascara o véu de ilusões que redundou na crise latino-americana e contaminou as veias do sistema financeiro internacional.
Escreve Banas: "É verdade que existe um forte afluxo do capital estrangeiro, mas ele não investe na construção de fábricas. É usado para comprar empresas mexicanas baratas ou operar na Bolsa da Cidade do México. Este é, aliás, o método empregado pelos operadores estrangeiros em Buenos Aires e São Paulo. Os observadores estrangeiros estão pouco familiarizados com a existência de dois Méxicos: um com o rosto virado para Miami e o outro levando uma existência de subproletariado do Terceiro Mundo".
A obra, que terá mais de 700 páginas, já poderia estar nas prateleiras das livrarias, não fosse o perfeccionismo de jornalista inconformado com a mutação meteórica dos acontecimentos. O autor atualiza os dados quase diariamente.
Filho de um engenheiro, Banas nasceu em Berlim, e transferiu-se para Paris em 1933 onde estudou economia social na Sorbonne. Foi ganhar a vida como jornalista, e colaborou com a revista francesa "Illustration", que ainda circula. Sempre afogado em números e cifras, sua maior paixão, ele conta ter se utilizado dos indicadores econômicas nacionais da Alemanha para prever, em 1939 —ano que marcou o início da Segunda Guerra Mundial— que os nazistas não teriam poderio para vencer.
Com a invasão da França pelos nazistas, Banas, abreviação do sobrenome original Banaskiwitz, obteve um visto para o Brasil, onde acabou trabalhando com mitos do porte de Assis Chateaubriand. Foi na sede dos Diários Associados, em São Paulo, que iniciou sua própria editora. "Chatô me dizia: não saia daqui senão os fiscais de renda te pegam", brinca.
Suas publicações especializadas em economia e negócios foram pioneiras e marcaram época, desde que editava, ainda nos anos 40, uma "newsletter" para banqueiros. Nesta entrevista à Folha, ele dá pistas sobre seu futuro livro, que tem o título provisório de "Estudos Latino-Americanos".

Folha - As economias latino-americanas passam novamente por uma crise financeira externa. Isso compromete de vez o desenvolvimento da região?
Geraldo Banas - Todo mundo emprestou, os asiáticos e os latino-americanos, lá um pouco menos, aqui um pouco mais. Os empréstimos foram utilizados para aumentar o consumo. No Brasil, o afluxo de "hot money" foi usado só para o consumo. É um pouco latino-americano, a oligarquia no poder fica contente em dar às massas acesso a essas bugigangas. Na Ásia, o dinheiro foi usado para fazer investimentos. Isso é indiscutível no caso da Coréia, que é o melhor contraponto ao caso brasileiro na Ásia. O investimento foi possível porque havia uma poupança local e que é resultado de disciplina. A poupança no Brasil gira sempre em torno de 17%, na Coréia corresponde a 31% do PIB. Essa capacidade de se financiar sozinho cria um ambiente fácil para o capitalista estrangeiro aplicar também, pois ele constrói sobre uma infra-estrutura já existente. Então, veja: no Brasil os nomes da indústria automobilística são Ford, Fiat, Volkswagen e General Motors. Na Coréia é Hyundai, Daewoo e Kia, capitais locais.
Folha - Mas o comércio intra-regional no bloco asiático ganha força depois de uma fase longa de generosidade norte-americana. A América Latina pode crescer como uma região alternativa de interesse para os EUA frente ao regionalismo asiático?
Banas - Pode, só que custa muito. Como ela não fez com as próprias forças o que fizeram os asiáticos, então os americanos precisam pagar, pelo menos a primeira prestação. Eles pagaram lá. Uma idéia de quanto isso poderia custar aos Estados Unidos é a Alemanha. A Alemanha Oriental tinha um nível produtivo incomparavelmente superior ao latino-americano, uma população muito instruída e custou por enquanto 500 bilhões de marcos ou cerca de US$ 325 bilhões para incorporar 17 milhões de habitantes.
Folha - A mesma lógica vale para o auxílio americano ao México?
Banas - Sim, mas os aliados estão ainda relutantes. Foram depositados os recursos no Bank of International Settlements (BIS). Eles não deram diretamente, o dinheiro fica depositado na Basiléia no banco dos bancos centrais, que é uma instituição ultra-prudente. Os bancos comerciais por enquanto apenas prometeram US$ 3 bilhões.
Folha - O que essa nova crise da América Latina revela de novo?
Banas - Lendo o meu texto, você vê que eu quase tinha previsto isso. Falou-se muito do neoliberalismo, Fernando Henrique falou desse nhenhenhém. Isso é uma coisa muito velha, da irrestrita dominância do mercado, que se arruma sozinho. Mas os EUA têm 31 milhões de pessoas que vivem do "food stamp" (vales-refeição), 15% da população. Do lado europeu, o Estado nunca abriu mão da sua função de corrigir o mercado, como na França e na Alemanha. O neoliberalismo virou um artigo de exportação dos Estados Unidos.
Se ele populariza essa idéia num país como o Brasil, o resultado é abrir a perna, quer dizer, abrir o país às importações, para que os Estados Unidos possam exportar mais, bem entendido. Outra medida é vender em leilão as empresas estatais por preços convidativos. O México vendeu estatais por US$ 47 bilhões e recebeu em "cash" US$ 7,2 bilhões. Claro que com o correr do tempo essas empresas criaram uma solidariedade de interesses que é perniciosa, não é boa. É um corporativismo. Não é mal que ocorra um desmanche, mas através de uma solução que leve a mais investimentos.
Folha - Essa visão se aplica à atual equipe econômica?
Banas - Eu li artigos em setembro, outubro do ano passado, em que eles diziam "nós vamos ter no ano que vem um grande déficit comercial". Antigamente eram chamados diferentemente, eram os "Chicago boys", termo que vem do tempo do Allende no Chile. Os mexicanos têm outro nome, chamam de "perfumados". Eles acharam que precisávamos nos basear no capital que vem de fora, e vinha. Mas as previsões de investimento direto ficavam apenas na casa dos US$ 2 bilhões, insignificante numa economia com renda nacional de US$ 500 bilhões. Quando criaram o real, tinha uma avalanche de dólar que levou o real aos R$ 0,85 por dólar naquele momento. Mas isso não podia corresponder a qualquer bom senso, que o real fosse mais forte que o dólar. O erro inicial foi no primeiro dia do real. Essa herança ficou porque agora eles precisam se agarrar nesse real.
Folha - Esse tipo de crise na América Latina é comparável a outras que vieram antes?
Banas - A crise da dívida não acabou, ela foi esquecida. A dívida externa dos países subdesenvolvidos soma US$ 1,4 trilhão. No México, a dívida agora aumenta, com os empréstimos que chegam a US$ 50 bilhões em benefício de grande parte dos especuladores que são americanos. Mas a dívida aumentada fica na contabilidade do México.
A ajuda implicará em mais ônus financeiro que não poderá ser pago apenas com o saldo comercial mexicano. Eles não vão poder pagar. A história se repete. Como no Tratado de Versalhes, imposto à Alemanha derrotada depois da Primeira Guerra e que simplesmente não podia ser paga. Até que Adolf Hitler declarou "não pago". Seria necessário um outro Plano Marshall, agora para a América Latina. Isso capacitaria esses países a governarem sem o peso dessa dívida. Numa região onde 40% da população apenas subsiste na miséria. Sem esse alívio, apenas rumamos para outra crise.
Folha - O Brasil se enquadra na mesma situação do México?
Banas - A diferença está na estrutura industrial e do agribusiness brasileiro, só precisa tocar para fora os 'perfumados'. Mas é importante estar atento para a mensagem da conferência de Copenhagen: investir na solução dos problemas sociais é um assunto econômico e é lucrativo. Isso não é mais Adam Smith ou neoliberalismo mas a negação disso.
Folha - Interessa aos países centrais esse tipo de modelo social?
Banas - Nos Estados Unidos fala-se cada vez mais em condições sociais e ambientais da produção, no dumping social, aí existe uma aliança entre os sindicatos e os democratas. Já os republicanos, que representam o "big business", as grandes corporações internacionais, estão menos preocupados em melhorar as condições sociais nos países da periferia. Ou seja, mesmo nos Estados Unidos não existe um bloco único. Mas o fato é que a produção somada de Japão, Alemanha e Estados Unidos, a capacidade produtiva planetária não tem como ser escoada frente ao atual achatamento do poder de compra.
É preciso criar poder de compra. Na China não havia poder de compra, mas quando se tornou interessante surgiram os recursos que permitiram a expansão da China. O capitalismo é assim, se você tem uma boa idéia surge o dinheiro para financiá-la. Serão necessários "planos marshall" para isso se tornar realidade na América Latina, mas apenas se os governos forem capazes de fazer investimentos em vez de apenas alimentar os desejos de consumo das classes médias. Os asiáticos investiram. Aqui, cada vez que abro os jornais vejo o que os bancos estaduais fizeram, ou os deputados votando aumentos de salários para si mesmos. Essa turma fala de pobreza mas é pura hipocrisia.
Folha - O senhor acha então que a Ásia tem mais futuro que a América Latina ou que as coisas não podem mudar por aqui?
Banas - As coisas mudam. Quem não compreendeu com esta crise recente é um declarado idiota. Não se pode fechar os olhos e fingir que já se é os Estados Unidos. Quando tivermos uma situação financeira resolvida poderemos fazer neoliberalismo. Quem não conseguir entender isso, olha, não posso dizer que é um economista.

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