São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um exame necessário

PAULO RENATO SOUZA

Causou polêmica a reedição da medida provisória que extingue o antigo Conselho Federal de Educação e cria em seu lugar o novo Conselho Nacional para a área. As questões levantadas expressam basicamente a opinião de alguns reitores e setores da intelectualidade em relação à proposta do governo de aplicar exames aos alunos dos últimos anos dos cursos de graduação.
As críticas e dúvidas concentram-se em quatro pontos: a conveniência da utilização de MP para legislar sobre a matéria, a efetividade do exame final como critério de avaliação, o conteúdo dos testes e as consequências do exame sobre a vida profissional dos alunos.
1) Não partiu do atual governo a iniciativa de extinguir o Conselho Federal de Educação através de MP. Em outubro passado, pressionado pelos problemas com a qualidade e expansão incontrolada do sistema universitário privado e pelas constantes denúncias de corrupção no encaminhamento dessas questões junto ao órgão, o governo decidiu agir drasticamente, extinguindo o Conselho. Não vamos discutir se havia alternativas. Assim, em primeiro de janeiro, estávamos diante do fato consumado da extinção do CFE. Era impossível não reeditar a MP, pois colocaria boa parte do sistema universitário num verdadeiro limbo institucional.
Naquela ocasião, o governo propôs em lugar do CFE um órgão que guardava semelhança, na sua forma e atribuições, com uma proposta que vinha sendo discutida no Congresso. Não se escutaram naquele momento as mesmas vozes que agora reclamam do suposto caráter antidemocrático da utilização da MP, possivelmente porque o novo órgão proposto era então próximo de seus interesses e reivindicações particulares.
Desde a primeira reedição da MP, o atual governo mostrou sua insatisfação com aquela proposta. Dentro do espírito do programa de governo "Mãos à Obra" para a área da educação, buscava-se um Conselho menos credenciador e mais avaliador, menos decisório e mais assessor e, finalmente, mais representativo do conjunto da sociedade e não apenas das corporações do segmento da educação.
Em janeiro, não tínhamos ainda uma proposta acabada. Além disso, as circunstâncias de um final de legislatura nos aconselhavam cautela e nos davam tempo para maior reflexão. A MP emitida em janeiro e reeditada em fevereiro tinha, portanto, um caráter eminentemente protelatório da proposta final do atual governo.
A reedição da medida em 15 de março concentra as novidades em três pontos essenciais. Em primeiro lugar, propõe a divisão do Conselho em dois conselhos setoriais —um para o ensino básico e outro para o superior— com composições e atribuições específicas e que reúne-se em pleno para apreciar matérias de interesse geral da educação.
A segunda inovação relaciona-se com a forma de indicação dos membros do Conselho. Apartando-se das formas tradicionais de livre arbítrio do governo ou de representação direta das corporações da área, a proposta do governo combina adequadamente a indicação de nomes por parte das entidades do setor e de segmentos mais amplos da sociedade, com a nomeação dos membros por parte do presidente.
A terceira está nas atribuições do Conselho, reforçando seu caráter normativo, por um lado, e avaliador, por outro. Pretende-se um recredenciamento periódico de todas as instituições de ensino superior, baseado num processo de avaliação de seu desempenho. Esta avaliação será feita a partir de informes circunstanciados, preparados pelo MEC e submetidos ao Conselho.
2) Entramos aqui na segunda preocupação em relação à MP. Felizmente, hoje, no Brasil, já não se discute a importância e a necessidade da avaliação universitária. Após um longo debate, até os setores mais arraigados a um corporativismo jurássico, finalmente renderam-se à imperiosa necessidade da avaliação, escutando-se, hoje, somente vozes isoladas que ainda tentam limitar o processo à chamada auto-avaliação.
A avaliação universitária é complexa, difícil e cara. Envolve aspectos institucionais; a qualidade e a quantidade dos livros, equipamentos e materiais; a qualificação e dedicação de seus professores; a eficiência no uso dos recursos públicos; a produção acadêmica e científica; a contribuição para a reflexão crítica do desenvolvimento da sociedade; a qualidade dos cursos de graduação e dos profissionais que forma; a qualidade dos cursos de pós-graduação; a produção de teses e sua contribuição ao desenvolvimento científico e tecnológico do país; e a contribuição da extensão universitária para o desenvolvimento e o bem-estar da sociedade.
Nosso país já avançou em alguns aspectos da avaliação universitária. Na área da pós-graduação, a Capes vem realizando um bom trabalho. Muitas das demais áreas citadas acima já estão contempladas no Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras, instituído pelo MEC em 1994.
Em outros aspectos mencionados é possível —e isto será feito— construir séries de indicadores de desempenho das instituições de ensino superior que haverão de compor os mencionados informes circunstanciados que o Ministério apresentará para recredenciá-las a cada cinco anos. O difícil será avaliar os cursos de graduação.
Nos cursos de graduação concentra-se a maior parte dos problemas de qualidade de nosso sistema de ensino superior: 60% de todos os alunos universitários de graduação frequentam instituições privadas, boa parte delas de qualidade altamente discutível.
A febre por transformação de faculdades em universidades, que vem assolando o país, constitui-se numa tentativa de ganhar a autonomia garantida pela Constituição e com isso a possibilidade de livrar-se da supervisão governamental e de expandir quase sem limites os seus cursos de graduação. O poder público precisa contar com instrumentos objetivos de avaliação para coibir os abusos e proteger a população contra a verdadeira exploração que, infelizmente, ocorre em muitas instituições.
A avaliação na graduação é muito complicada pela dificuldade de construir indicadores objetivos, que resistam a interpretações subjetivas, que, frequentemente, causam polêmica e dão margem ao favorecimento desta ou daquela instituição. Alguns indicadores indiretos —a relação professor/aluno, o tempo médio de graduação, a frequência dos alunos, as taxas de evasão escolar etc.— podem e devem ser utilizados. Outros, entretanto, como a produção científica da instituição, têm relação muito indireta com a qualidade dos cursos de graduação. O que interessa saber é, finalmente, o que o aluno apreendeu.
Aqui chegamos à necessidade de contar com o resultado de exames dos alunos que permitam uma medição simples e objetiva desta variável essencial à avaliação dos cursos de graduação. É óbvio que será um indicador parcial, que comporá com outros indicadores a avaliação de cada instituição. Não se pretende que seja o único, mas ele é essencial ao processo.
Uma avaliação objetiva da graduação é condição indispensável para que o novo CNE evite recriar o antigo cartório. A introdução dos exames é uma medida corajosa e essencial. Criar o Conselho e não dar-lhe esse instrumento é manietá-lo, colocando-o à mercê dos lobbies e grupos de pressão de toda ordem. É óbvio que a avaliação não termina aí, mas é preciso evitar que ela se limite a esquemas auto-avaliativos. A prova proposta é simples e segura. O resto, neste caso, é acessório.
Perguntam-se muitos porque a MP tratou apenas desse instrumento de avaliação. A resposta é simples: é o único que requer medida legislativa. Os demais indicadores podem ser construídos mediante procedimentos administrativos. Um exame universal e obrigatório, repito, não será o único instrumento de avaliação.
3) A terceira preocupação é o conteúdo dos exames. De um lado, questiona-se seu caráter nacional em um país tão heterogêneo. Todas as carreiras universitárias no Brasil têm um currículo mínimo nacional definido pelo extinto Conselho. Será com base neste currículo que se realizarão os exames.
Por outro lado tem-se mencionado a dificuldade operacional do exame em áreas do conhecimento onde questões filosóficas ou ideológicas são importantes. Isto não é empecilho para a elaboração de provas que avaliem objetivamente o conhecimento dos alunos sobre o conteúdo das várias correntes do pensamento. É oportuno, também, lembrar que o exame será estendido gradualmente para outras carreiras além das áreas de saúde, engenharia e direito.
Na sua política de gradativa expansão, por sua vez, o MEC buscará priorizar as carreiras com o credenciamento para algum exercício profissional e para aquelas que o setor privado tem mostrado maior apetite de expansão.
4) Finalmente chegamos aos eventuais prejuízos aos alunos hoje matriculados em faculdades de duvidosa qualidade. Argumenta-se que um mau resultado colocaria um estigma indelével na vida profissional daqueles que não conseguissem um bom resultado.
Penso ter deixado claro que busca-se avaliar os cursos através dos alunos e não os alunos propriamente ditos. A sua nota não está vinculada ao diploma e sequer constará dele. Estas foram alternativas que levamos em consideração, descartadas justamente para não prejudicar profissionalmente aqueles que frequentaram cursos reconhecidos pelo poder público. Da mesma forma, o MEC divulgará apenas os resultados por curso e não por aluno.
É importante que o exame seja universal —e portanto obrigatório para todos os formandos— e que haja o maior empenho por parte dos alunos. A única alternativa —mais branda e que garante minimamente os dois requisitos— consiste em constar o resultado apenas do histórico escolar do aluno, um documento acadêmico e não profissional, com a possibilidade do exame ser repetido pelos alunos em anos subsequentes. O que importa para o MEC, entretanto, é o primeiro resultado, pois este é o que avalia o nível da escola.
Algumas críticas têm um apelo sentimentalista, ao afirmar que o sistema de avaliação faria dos alunos vítimas do sistema educacional. Peço perdão: as vítimas já existem. São os alunos matriculados em faculdades e universidades que atuam inescrupulosamente, explorando uma população que busca um diploma como meio de ascensão social.
Outras vítimas são os pobres que recorrem aos serviços de saúde, sem a garantia —como têm as classes média e alta—, de estarem sendo atendidos por médicos de boa formação universitária.
Nosso sistema educacional possui verdadeiras ilhas de excelência. Há segmentos razoáveis, mas uma grande parte vai muito mal. Precisa de consertos em todos os níveis. O governo já anunciou medidas para o primeiro e o segundo graus e continuará esse esforço de aprimoramento. Toda a sociedade deve colaborar nesta operação de guerra.
A contribuição dos alunos de graduação para este grande esforço é precisamente esta: que nos ajudem realizando os exames e informando-nos de como vai realmente nosso ensino universitário. Com base em suas informações, os dirigentes do sistema —diretores, reitores, secretários, ministro— adotarão as medidas cabíveis para corrigir as distorções. Muitos deles infelizmente são as vítimas de hoje. Que nos ajudem a evitar novas vítimas.

Texto Anterior: ONDAS NA PISTA 1; ONDAS NA PISTA 2; ONDAS NA PISTA 3
Próximo Texto: Avaliação do ensino; Desperdício; Planos de saúde; Juventude embriagada; Tempo de serviço; Arapuca real
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.