São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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O inominável

DO "EL PAÍS"

Prince está morto. Místico, o músico não crê mais nas palavras. Trocou o nome por um símbolo impronunciável e avisa que só será livre em 99, ao final do contrato com a Warner. Ele diz estar "num outro nível, cada vez mais longe", onde há um único tipo de comunicação: "amor"
.... fez quatro exigências para esta entrevista: não levar gravador, bloco de notas nem caneta; não se referir a ele como Prince e sim como "o artista antes conhecido por Prince"; usar seu novo nome, o signo ....; incluir a frase "Prince está morto"; escrever que todos os fãs e empregados do artista usam pulseiras de ouro "em memória de 'The Gold Experience', disco que talvez nunca seja lançado".
—Por que "The Gold Experience" não vai ser lançado?
—Porque não quero que chegue às lojas de disco, não quero fazer com minha música o que as gravadoras mandam, não quero estar dentro do sistema. Digamos que, no princípio, quando eu eram mais jovem, meu interesse estava concentrado em fazer apenas. Agora, estou mais interessado em conservar.
—Mas há um conflito aí: ou você está em alguma gravadora, e então não é totalmente livre, ou não atinge o público. Você não quer que as pessoas o escutem?
—Sim, claro. Mas isso eu conseguirei em 1999.
—Por que só em 1999?
—Porque é quando termina meu contrato com Warner. Só então poderei fazer absolutamente tudo o que quiser com meus discos. Dá-los aos fãs que venham aos meus shows, por exemplo. Se você é livre, pode fazer o que quiser! Posso comprar uma emissora de rádio e colocar quantas músicas minhas quiser, posso lançar todos os discos que desejar. E eles podem custar muito menos e me render muito mais apesar disso! Você sabe quanto custa fazer um disco? Muito pouco.
—Mas você vai permanecer em silêncio até 1999?
—Não, dá para fazer algumas coisas. Vamos lançar o vídeo de "The Gold Experience", por exemplo. É a primeira vez que alguém lança um vídeo sem ter um disco no mercado que o apóie. E também podemos fazer shows. Na verdade, não parei de fazer shows. Neles, só tocamos músicas novas, canções que não estão em nenhum disco, que o público nunca ouviu. Não tocamos mais nenhuma das canções anteriores, jamais.
—E qual a reação da platéia?
—As pessoas chegam esperando escutar os temas que conhecem. No início, ficam desconcertadas. Depois, entram aos poucos no clima. No fim, acho que se adaptam e acabam gostando.
—Seu nome atual é impronunciável, não? Ou se pode dizê-lo de alguma maneira? —Não, não se pode dizer nada.
—Como seus amigos o chamam, por exemplo?
—Não me chamam de nenhuma maneira, não têm necessidade de fazê-lo. Meus amigos estão sempre comigo.
—Sim, mas suponha que uma vez algum deles esteja no quarto ao lado e precise chamá-lo em voz alta.
—Não, meus amigos estão sempre no mesmo quarto que eu.
—É mesmo? Isso é ótimo, mas pode ser meio asfixiante, não? Esta mudança de nome tem a ver com a questão dos direitos autorais e com sua briga com a gravadora?
—Não, não se deve fazer confusão sobre isso. Não mudei meu nome por causa da Warner. Aliás, nos damos muito bem. Tudo depende de como você maneja a agressividade e a negatividade que existe ao redor. Eu não discuto com eles, simplesmente quero fazer outras coisas. Estou em outro nível, e cada vez mais longe.
—Seu nível atual seria o mesmo desse nome sem som?
—Sim, e, a continuar dessa maneira, chegará um dia em que sequer usarei palavras... —Por quê?
—Porque não acredito nas palavras. Acho que a verdadeira comunicação se estabelece em outro nível.
—Sim, mas as palavras não são necessárias?
—Com Mayte (cantora de seu grupo e sua suposta namorada), não preciso falar. Estamos juntos e isso basta para um entendimento perfeito entre nós. Palavras não passam de discussões.
—É estranho escutá-lo dizer isso: você escreve as letras de seus discos, muitas vezes letras muito boas, muito expressivas.
—Há um nível maior de compreensão, além das palavras. E além desta vida. Palavras só servem para a vida terrena
—Você está falando de experiências espirituais do tipo viagens astrais? Você já teve alguma experiência assim?
—Hmmm... No mínimo vou parecer um pouco louco se disser isso, mas a verdade é que acho que somos um antes e outro depois de passar por este mundo. A personalidade terrena não é nada mais que um brevíssimo episódio do que somos, pequena parte de nós. E nessa outra realidade não se necessita de palavras para se comunicar. Você só precisa delas na Terra.
—E você já esteve ali, "do outro lado"?
—Várias vezes.
—Uma delas teria sido em Porto Rico, há dois anos, quando você decretou que Prince morreu e adotou um novo nome?
—Em Porto Rico, me dei conta de que havia outra maneira de viver. Foi quando decidi mudar.
—E, desde então, o que aconteceu? Dá certo simplesmente dizer que se vai mudar? Você conseguiu viver todos estes meses em outra realidade?
—Dentro de minha cabeça sou totalmente livre. No resto, não. No dia-a-dia, me sinto preso, numa jaula. Mas procuro não perder a paciência. Com a Warner, por exemplo, eu já tentei de tudo. Até me infiltrar lá...
—Sim, em 1992 você assinou um contrato com a Warner no qual, além de ganhar US$ 108 milhões, viraria um de seus vice-presidentes.
—Sim, mas não adiantou nada. Nem se eu estivesse à frente de toda a empresa adiantaria. Porque o que funciona é o sistema em si, e não se pode mudá-lo de dentro. É um sistema absurdo, impossível.
—Você pode citar um exemplo?
—A Companhia de Dança do Harlem queria uma música minha para montar um balé. Eu concordei na hora, disse que lhes daria uma música absolutamente de graça. Agradava-me muito a idéia, fiquei lisonjeado que quisessem dançar uma de minhas composições. Pois a gravadora não permitiu. Disseram que preferiam fazer uma doação em dinheiro à companhia, mas nunca a minha música: eles não querem que haja nenhuma música minha fora do controle deles. Tentei convencê-los, mas não houve jeito. Coisas assim são desesperadoras. Veja, Miles Davis, Jimi Hendrix, todos os grandes nomes da música na realidade foram crianças em relação às suas gravadoras. Eles não tinham nenhum poder, nenhum controle sobre sua obra. Isso é inadmissível. Então, me sinto prisioneiro. Mas, dentro de mim...
—Sim?
—Dentro de mim vivo nessa outra realidade, que é um lugar onde não se necessitam palavras nem nomes, onde não existe violência nem solidão, nem dor. Um lugar que pode ser resumido numa palavra: amor.
—Mas isso é o paraíso...
—Sim.
—E parece que os seres humanos perderam este lugar mítico faz um tempo...
— (suspirando) Sim... E desde então, desde que estou no outro lado, minha música mudou tanto! Agora é muitíssimo melhor. Há tanta diferença entre o que fiz antes e o que faço agora que é como a noite e o dia. É uma música cheia de vida.
—Você não tem medo de ficar fora do jogo? Quer dizer, até 1999, quando você volta a ser dono de sua obra, faltam cinco anos. É muito tempo, mesmo que você lance vídeos, dê shows. Sem discos no mercado e músicas nas rádios, sem a poderosa máquina de divulgação e publicidade das gravadoras, seu público pode esquecê-lo, não?
—Não creio. Se você ama alguém de verdade, pelo menos comigo acontece isso, se eu amo alguém de verdade, não por seu físico, mas por coisas profundas, por sua alma, então amo essa pessoa para sempre. E eu espero que isso aconteça também comigo.
—O que você diz é muito bonito, mas você acredita mesmo que o amor dos fãs é assim? —Bem, tenho pouca experiência nesse assunto, porque estive por cima o tempo todo, vi muitas coisas, conheço o que é o mundo, então... Mas se houver duas pessoas que gostem de mim e me escutem de verdade, me basta. Não preciso de mais.

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