São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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REGGAE À MINEIRA

MARISA ADÁN GIL

Rejeitados pelos órfãos do Clube da Esquina, quatro meninos de Belo Horizonte formaram um grupo de reggae. Como não eram pretos nem jamaicanos, optaram por fazer um virado, mesclando farinha brasileira aos caldos de fora. No show que dão hoje em São Paulo, os rapazes da banda Skank mostram hits que estão nas bocas de roqueiros, mauricinhos, motoristas... Mineiros que são, eles reconciliam teens com MPB. E ajudam a criar a nova história do pop nacional
Hoje é dia de festa. Não para uma pessoa ou um grupo, mas para uma geração. Quando subir ao palco do Olympia, o Skank não estará comemorando apenas uma vitória particular —300 mil discos vendidos (120 mil de "Skank" e 180 mil de "Calango"), dois hits ("É Proibido Fumar" e "Te Ver"), uma turnê de sucesso. Celebrará a vitória de uma linhagem de músicos envolvida na criação de um novo pop nacional —em que os ritmos se misturam, o rock perde o trono e ritmos locais retornam, renovados.
Curiosidade e um entusiasmo ingênuo, quase infantil. São as expressões que passeiam nos olhos de Samuel Rosa, 28 (vocais, guitarra), Henrique Portugal, 30 (teclados), Lelo Zaneti, 27 (baixo) e Haroldo Ferretti, 25 (bateria), os garotos do grupo mineiro Skank. É curioso ver como reagem à sua estranha posição —a um tempo, veteranos e novatos, pioneiros e principiantes. Foram eles os primeiros a mostrar, em 92, que existia vida inteligente no pop, longe da "geração rock anos 80" e dos Lulu Santos da vida. Para gente como Chico Science, Raimundos e Mundo Livre —os representantes mais famosos da nova onda—, o Skank é história e inspiração. Mas, para o público, são (ainda) novidade absoluta.
"Hoje a gente tem encontro com Gerald Thomas para saber ao certo quem vai botar os peitinhos de fora", diz Samuel.
Idéias de grandiosidade não passam pelas cabeças dos integrantes do grupo. Não há turnês de sucesso —apenas uma sequência de shows, sem pausas para cantar vitória. Também não se consideram propriamente pioneiros. "Somos netos de Gilberto Gil e Jorge Benjor", diz Samuel. "Mas, dessa galera que está aí, acho que fomos nós que começamos essa história de resgate da MPB, não é?"
Foi em 1992 que Henrique entrou nos escritórios da gravadora Sony, no Rio, com um disco independente embaixo do braço. Deu sorte: ouvidos treinados captaram potencial comercial por trás daquele reggae estranhamente mineiro.
Contrato na mão, relançaram seu CD independente "Skank", dessa vez em escala industrial. Chegava ao mercado o primeiro exemplar da nova cobinação de ritmos da música popular brasileira —que incluiria, mais tarde, o maracatu/rock, o forró/funk, o samba/rap...
"Nos anos 80, ficou uma coisa mal explicada, quem gostava de rock não podia gostar de MPB e vice-versa. E a gente nos bares de Belo Horizonte, fazendo versões reggae para Chico Buarque, Milton Nascimento, Benjor...", conta Samuel, o mais falante.
A idéia de um grupo de reggae nascendo em Minas Gerais não parece estranha ou improvável— parece impossível. "Depois dos primeiros ensaios, chegamos a uma conclusão. Definitivamente, não somos pretos nem jamaicanos. A gente é mineiro mesmo", diz Samuel. "Era muita pretensão nossa querer ser uma banda de reggae".
Não desistiram: mudaram. Em vez de tentar "colar" os arranjos de gente como Sly & Robbie e Aswad, ou mesmo de Bob-pai-de-todos-Marley, passaram a incorporar o erro. "Em vez de dizer 'isso aqui está muito brasileiro', falamos 'foda-se, é assim mesmo que vai ser'." Baião, calango (versão mineira do repente nordestino), frevo, tudo era permitido na nova mistura.
Começavam a crescer os "patinhos feios" de BH —rejeitados pelos órfãos do "Clube da Esquina" e incompreendidos pela turma também mineira do grupo de hard rock Sepultura. A associação com a gravadora rendeu um hit modesto em 93, "O Homem que Sabia Demais". No ano seguinte, uma vibrante participação no Hollywood Rock (na mesma noite da intragável Whitney Houston) daria novo empurrão. "Mostramos que o trabalho tinha consistência, que não era uma banda de um hit só".
"Te Ver", faixa do segundo CD, "Calango", é assobiada com a mesma convicção por donas de casa atarefadas, mauricinhos em BMWs e motoristas de ônibus. Samuel, o relutante "sex symbol" da banda, é abordado na rua por adolescentes frenéticas. "Recebo propostas, mas nunca sei se estão brincando ou não. Também não quero saber. Não estou interessado em ir para a casa de uma fã".
A plataforma que os conduziu do anonimato à fama tem nome: Roberto Carlos. "É Proibido Fumar", "cover" de sucesso do Rei, estourou nos últimos dois meses, atingindo desde as estações mais bregas de AM até o público adolescente da MTV. "Abriu muitas portas, sim. Eu tenho muito tesão pelo que a gente fez, que foi passar uma leitura de um cara como o Roberto Carlos para o pesoal mais novo. O Roberto escreveu uma página da cultura nacional, é cúmplice de toda essa idéia de pop brasileiro. Foi ele que trouxe, lá nos anos 60, a ligação da música com o comportamento, corte de cabelo, roupa, jeito de andar, falar..."
Nestes tempos de intolerância tabagística, o "melô do Maluf" virou trilha sonora para fumantes e não-fumantes. "Como não sou de São Paulo, não vivi essa história da proibição do fumo em bares e restaurantes", diz o vocalista. "Mas acho a iniciativa do Maluf genial. Pessoalmente, acho um saco entrar num resturante e encontrar gente fumando. Abrir mão do vício por umas duas horas, em prol da comunidade, não vai matar ninguém."
"Não gosta de reggae? Fume um baseado, que você vai gostar." O velho clichê já não serve mais. Apesar do sugestivo nome, o Skank é formado por legítimos representantes da geração saúde: não fumam, gostam de dormir e acordar cedo, rejeitam o uso de drogas. Nada de maconha, "rastafarianismo" ou referências a Jamaica.
E a tradição, como é que fica? "O reggae evoluiu muito dos anos 70 pra cá, se desvencilhou dessa temática. Hoje, achamos aquele reggae 'viajante' do Bob Marley meio chato, até. Já o reggae moderno não, tem batidas eletrônicas, nervosas, mais excitantes e próximas do Brasil".
Tanta proximidade talvez sirva para explicar a explosão em terras tropicais do ritmo de Jah, o deus da religião rastafari a que o reggae esteve ligado no início. Por aqui, a cadência pontuada pelas cordas de um baixo vive seu auge. Nunca se tocou tanto reggae em rádio e TV. Nunca houve tantos shows "rasta" frequentados por bandos de jovens roqueiros. "Um menino de 16 anos que gosta de 'reggae' sabe que está escutando uma coisa que seu pai, o síndico e o diretor do colégio não gostam. Isso não acontece mais com o rock. Se o menino gostar dos Rolling Stones, o pai vai dar aula pra ele de Mick Jagger", diz Samuel.
Pela primeira vez na entrevista, as sobrancelhas do vocalista se inflamam. Ele tem algo a dizer sobre essa história de Rolling Stones no Brasil. "Por que ninguém disse para essa garotada que eles não são mais a melhor banda de rock do mundo? Acho uma sacanagem dizer para os adolescentes que eles têm que gostar dos Rolling Stones, quando existem bandas tão boas hoje, gente como Green Day, Pearl Jam. Não concordo com essa histeria coletiva. E não me venham com 'eles têm 50 anos'. Lá em BH tem um velhinho de 72 anos que canta, toca violão, pandeiro, chupa cana e ainda balança o pé."
Skank e Stones têm pelo menos uma coisa em comum: são ótimas bandas de palco. Para o show em São Paulo, os mineiros reservaram a estréia do primeiro cenário de sua história, assinado pelo artista plástico Zé Carratu. Na sequência, tocam no Rio (dia 30, no Imperator) e Belo Horizonte (7 de maio, no Minashopping). Outros planos? "Meu único plano é casar com a Sharon Stone", diz Samuel. "Mas a Adriane Galisteu serve!"
Além de fantasiar com a "ex" de Senna, Samuel tem outros interesses. Seu grande sonho é ser artilheiro do Cruzeiro. "Final de campeonato, 36 minutos do segundo tempo, zero a zero. Eu, camisa 9, pego a bola, driblo o zagueiro e chuto. Depois, saio comemorando e caio no fosso. Fim."

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