São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 1995
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Homem que traiu a CIA se diz um 'canalha'

VINCENT JAUVERT
DO "LE NOUVEL OBSERVATEUR"

Aldrich "Rick" Ames é um vilão nacional, um traidor odiado nos EUA. Funcionário graduado da CIA, vendeu ao inimigo, a KGB, tudo o que sabia. Hoje Rick Ames é o preso nº 40087-083 da penitenciária de Allenwood (Pensilvânia), de segurança máxima.
A entrevista de três horas teve lugar no recinto de visitas da penitenciária, fechado para outros visitantes. Um oficial da CIA, Carol Davis, estava presente e interrompia Ames cada vez que este, a seu ver, estava prestes a revelar informações sigilosas.
Pergunta - Dizem que o sr. é o mais importante espião da KGB (e depois do SVR, o serviço russo de espionagem) jamais descoberto trabalhando no interior da CIA. O sr. concorda?
Aldrich Ames - Eu colocaria a coisa da seguinte maneira: fui o espião americano a serviço da KGB que teve o maior acesso às melhores informações durante o mais longo período de tempo.
Pergunta - O sr. tem orgulho disso?
Ames - Não, nunca tive. Eu jamais disse a mim mesmo: "Sou melhor do que Kim Philby" (agente duplo britânico, morto em Moscou em 1988). Vale observar que a CIA quer evitar que eu me transforme numa personalidade, como Philby.
Pergunta - Mas o sr. é um canalha, não é?
Ames - Sim, é claro, fui um canalha. Moral e legalmente meu caso é claro. Mas a CIA quer controlar o que eu falo. Ela tem horror de ser criticada publicamente.
Pergunta - Então o sr. merece a pena a que foi condenado?
Ames - Ser condenado por espionagem e ser condenado à prisão —sim, mereço.
Pergunta - À prisão perpétua?
Ames - O sr. sabe, as sentenças nesses casos são políticas. Veja o caso dos Rosenberg. A meu ver eram culpados. Mas será que mereciam ser executados por isso? Provavelmente não.
Pergunta - O que se passou em sua cabeça em abril de 1985? Por que o sr. decidiu, aos 44 anos, trair seu país e a CIA?
Ames - Eu precisava de dinheiro. Minha vida estava conturbada. Eu acabava de voltar do México, onde passara dois anos. Estava me divorciando, ia me casar de novo e tinha muitas dívidas. Achei que a situação financeira era desesperadora. Na verdade não era, mas eu não conseguia raciocinar.
Pergunta - O sr. não cogitou outras soluções para resolver seus problemas financeiros?
Ames - Sim, roubar um banco, por exemplo. Eu tinha muitas idéias muito confusas. Escolhi aquela que me pareceu mais fácil.
Pergunta - Ou seja, vender informações aos soviéticos. O sr. acabava de ser nomeado chefe de operações clandestinas no bloco soviético. Assim, o sr. sabia de muitas coisas que interessariam à KGB.
Ames - Sim. Na guerra dos espiões, nós éramos mais fortes. Dávamos de cem a um neles. Imagine só: 40 oficiais da KGB haviam desertado para nosso lado nos anos anteriores, e haviam descrito sua organização com precisão. Conhecíamos muito bem seus pontos fortes e fracos. Já a KGB tivera poucas vitórias contra a CIA. Ela esperava desesperadamente que algum oficial da CIA lhe oferecesse seus serviços. Eu sabia disso.
Pergunta - O sr. diz que na contra-espionagem a CIA era muito forte. Também o era na espionagem?
Ames - Pelo contrário. Naquela época, Gorbatchov acabava de chegar ao poder, mudanças radicais se anunciavam e nós não tínhamos uma única fonte política de alto nível. Estávamos cegos.
Essa é a triste verdade. A URSS era o primeiro alvo da CIA e nós não tínhamos conseguido infiltrar corretamente a KGB. Gastávamos fortunas na obtenção de informações técnicas. Mas quase nada para obter bons informantes sobre a situação política.
Pergunta - No dia 16 de abril de 1985, o sr. entrou na embaixada soviética em Washington. O sr. pediu que um envelope fosse remetido ao responsável pela KGB, sabendo que ele estava habilitado a tratar casos como seu —informantes voluntários.
Ames - Sim, graças ao cargo que eu ocupava na CIA, eu estava a par do funcionamento da residência da KGB na embaixada. Tínhamos dois informantes lá dentro (que seriam executados meses depois em Moscou, denunciados por Ames). Portanto, eu sabia exatamente a quem me dirigir.
Pergunta - No envelope que o sr. encaminhou à KGB havia várias folhas. Numa o sr. havia escrito os nomes de três oficiais soviéticos que haviam se proposto a trabalhar para a CIA, mas que esta sabia, na realidade, serem agentes duplos a serviço da KGB. Em outra, o senhor indicava muito claramente sua identidade e o cargo que ocupava na CIA. Finalmente, o sr. exigia US$ 50 mil por essas informações. O sr. tinha certeza de que seria pago?
Ames - Sim, 100% de certeza.
Pergunta - Mas o sr. não estava oferecendo grande coisa.
Ames - É verdade. Só os nomes de seus próprios agentes e minha identidade. Eu não cogitava revelar mais futuramente. Achei que estava dando um golpe, simples como um arrombamento e sem grandes consequências: eu não trairia nossas verdadeiras fontes.
Pergunta - Por que a certeza?
Ames - Eu disse a mim mesmo: "Quando eles abrirem o envelope, vão pensar: 'Esse cara sabe muita coisa. Então, mesmo que tenha apenas copiado a lista telefônica, precisamos dar a ele os US$ 50 mil. Ele ficará grato e um dia voltará a nos procurar por conta própria'". Acho que era essa mesma a aposta deles. Mas eu não sabia que eles iriam ganhá-la.
Pergunta - A KGB realmente ganhou a aposta: um mês depois de receber os US$ 50 mil, em dinheiro vivo, o sr. retornou à embaixada soviética. Mas dessa vez, levando os nomes de fontes verdadeiras. Por que essa mudança radical de posição?
Ames - Por que eu me atirei no abismo? Nove anos depois, ainda não sei exatamente por quê.
Pergunta - O sr. bebia muito naquela época.
Ames - Sim, e talvez essa seja uma das razões de minha incapacidade em me lembrar. Mas isso não explica meu gesto. Na verdade eu não podia mais voltar atrás. Eu estava menos seguro de mim, tinha medo. Sim, foi isso, um misto de medo e cobiça.

Tradução de Clara Allain

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