São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinema não produziu tantos gênios assim

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

As comemorações em torno dos cem anos de cinema trazem uma complicação. É que, a rigor, não se sabe direito como comemorar. Retrospectivas? Grandes panoramas históricos? Homenagens? Enciclopédias? O problema é que esse gênero de iniciativas é rotineiro, e ninguém esperou que o cinema fizesse cem anos para organizar listas de melhores filmes, festivais, exposições etc.
O cinema não poderia deixar de ser uma arte narcisista —e, com efeito, não há ano em que não se volte para o próprio passado, que não se comemore a si mesmo.
Este século, que já foi o do cinema, tende a transformar-se no século da cinefilia. Desconfio que a coisa começou na França, com os "Cahiers du Cinéma": uma espécie de vingança francesa contra o domínio americano nessa área.
O que era simples divertimento de massas, ou mesmo grande obra de arte, tornou-se objeto de pedantismo. A apreciação do cinema, ou seu mero desfrute como divertimento, tornou-se paixão de colecionador, erudição da insignificância, exaltação do secundário.
A esta altura dos acontecimentos, você será banal se disser que Orson Welles, Charles Chaplin ou Federico Fellini são os maiores gênios do cinema. Não, meu caro, você está minimizando Nicholas Ray. Samuel Fuller também é um gênio. E John Huston? Aí nem se fala. O número de gênios produzidos pelo cinema americano só é menor do que os de gênios brasileiros —por exemplo, Zé do Caixão e Mazzaropi, cujas obras, sem favor, têm a estatura do melhor Sganzerla.
Fica difícil falar dos cem anos de cinema sem cair ou na trivialidade ou no esnobismo. É o que ocorre com as listas de melhores filmes, de atrizes mais bonitas, de maiores diretores. O Mais! deste domingo teve listas desse tipo, elaboradas pelo escritor cubano Cabrera Infante.
É um problema quase insolúvel. As mulheres mais bonitas? qualquer um diria, por exemplo, Ingrid Bergman, Grace Kelly... como não ser banal? Cabrera Infante cita Dolores del Rio, exclui Greta Garbo. Outra pessoa pode dizer: ah, mas você se esqueceu de Gens Lierney. Ou, procurando em alguma enciclopédia de cinema: Alida Valli, Alida Valli!
Pergunta complicada, também, é a que tem sido formulada nas páginas da Ilustrada: "qual o filme da sua vida"? Ou você cai no previsível —Chaplin, Welles— ou tem de tirar alguma coisa do bolso do colete —aquela pequena obra-prima de Sacha Guitry que só você viu, ou o capa-e-espada de uma longínqua matinê em Itanhaém.

Cinefilia
Talvez o fenômeno psicológico da cinefilia tenha, a partir daí, uma explicação. Como arte de massas, o cinema é uma máquina de produzir unanimidades: Carlitos, Greta Garbo, Clark Gable. Ninguém disputa a genialidade de Orson Welles. Não será necessariamente por esnobismo ou por vontade de ser original, contudo, que alguém de repente diz que o maior filmes de todos os tempos é "Fausto" de Murnau, e que os melhores diretores são Satyajit, Ray e Mizoguchi.
Ocorre, por assim dizer, uma reação de autodefesa. O domínio que o cinema exerce sobre o público é tão acachapante, que o cinéfilo trata de proteger sua própria individualidade. Será sempre o descobridor de gênios desconhecidos, de obras-primas obscuras, e faz isso com máxima sinceridade e paixão, porque o cinema clássico, os filmes que todos viram, os atores que todos adoram, sempre ameaçam esmagá-lo, de tão poderosos.
Há outro fator em jogo, na mania de retrospectivas e redescobertas que caracteriza o mundo dos apreciadores de cinema. É que filmes antigos, considerados medíocres ou menos passatempos quando foram lançados, de fato melhoram com o tempo.
Um faroeste "B" ou um filme policial sem pretensão nenhuma, podem virar obras-primas 30 anos depois. O exemplo clássico é "Casablanca".
Arrisco um raciocínio, que não vale para todos os filmes, mas talvez explique um pouco o fato de alguns melhorarem tanto.
É que, nos últimos 10 ou 15 anos, o cinema comercial americano conheceu um enorme salto de eficiência, de técnica, de talento. Otavio Frias Filho, escrevendo a propósito de "Pulp Fiction", apontou para os progressos da "era Spielberg": um cinema de velocidade total na ação, virtuosismo máximo nos efeitos especiais, controle milimétrico das emoções do espectador; satisfação garantida, enfim.
Surge então o seguinte paradoxo: o cinema americano melhorou tanto, do ponto de vista comercial, que um filme comercial ruim dos anos 50 vira... filme de arte. Efeitos especiais precários, hesitações de roteiro, cenas demasiadamente longas, pormenores inúteis, tornam-se "artísticos" com o passar do tempo. Um filme policial americano dos anos 40 está mais próximo de Michelangelo Antonioni, premiado ontem com o Oscar à carreira, do que de "Robocop".
As cenas de violência são hoje tão realistas, os efeitos especiais tão convincentes, os detalhes tão estudados, que filmes comerciais antigos se cercam de uma aura de irrealidade, de uma página artística. As coisas hoje em dia vêm prontas para o espectador, e um velho faroeste de John Wayne exige-nos tanta concentração quanto a um clássico japonês de Akira Kurosawa.
Os filmes antigos se tornam, desse modo, mais "míticos" do que nunca; mais nebulosos, inatingíveis, irreais. Um musical idiota de Bubsy Berkeley parece ter saído dos livros de Breton. O surrealismo, aliás, sabia o quanto de mistério e de efeito estético se esconde nos objetos de consumo, nos artefatos industriais, quando estes ficam fora de moda.
Ao longo de cem anos, o cinema não produziu tantas obras e arte e tantos gênios quanto se acredita. Muito pelo contrário. Mas a cinefilia é uma espécie de perversão cultural benigna; numa arte que se dedica a dominar e ocupar totalmente a imaginação em funcionamento.
É uma vitória contra a passividade que o cinema impõe ao espectador. Fetichizando os grandes mestres do passado em retrospectivas e homenagens rituais, o cinéfilo como que consuma uma involuntária e amorosa traição aos ídolos que cultua. Talvez não seja errado comemorar dessa forma, o centenário do cinema.

Texto Anterior: Gil, Naná e Milton dão canja após o show do Ilê Aiyê no Percpan
Próximo Texto: Estrelas arriscam em looks clássicos e básicos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.