São Paulo, sábado, 1 de abril de 1995
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O atraidor faz tudo

JOSUÉ MACHADO

Existe a palavra "atraidor", escrita pelo professor Nicolau Sevcenko no artigo "O mapa secreto da Cybéria", publicado nesta Folha? O leitor Carlos Eduardo Martins, do Rio, investe contra neologismos do computês como "acessar", "diretório", "deletar", "gerenciador", "salvar" etc. e considera "atraidor" uma invenção de Sevcenko. É possível, mesmo, que a palavra "atraidor" tenha sido evocada por semelhança com a inglesa "attractor", que daria algo como "atrator", sugere o leitor. Mas "atraidor" existe, sim, em nossa pobre língua, embora o Aurélio não a registre, provavelmente por desuso. O que não se usa costuma estragar-se, definhar, decair, murchar e morrer, como dizia a sábia madre superiora.
"Atraidor" é formado obviamente de "atrair" + "dor". Verdade que a última pessoa que usou "atraidor" foi frei Felipe da Luz, num sermão em 1625, em que aproveitava para condenar a corrupção nos meios políticos, então novidade. Não faz mal. A palavra está eternizada em outros dicionários para quem tiver coragem de usá-la. Aulete, Melhoramentos, Morais, Cândido de Figueiredo, Antenor Nascentes, Laudelino Freire, Lello e o Etimológico de Silveira Bueno são alguns que não se envergonharam de registrar o adjetivo "atraidor" (que atrai, atraente, atrativo), e também substantivo (indivíduo que atrai; sedutor). Vários registram até o substantivo "atraimento", que significa atração, mas também arrebatamento, êxtase. Foi em estado de "atraimento", aliás, que o presidente discursou contra os críticos do Real em São João do Jaguaribe, Ceará. Fiquemos no "atraidor", que dá mais certo. Por estranho que pareça, portanto, essa palavra não é invenção sevcenquiana.
Por isso, quando o deputado Arthur Virgílio considerou "atraente" o deputado Delfim Netto, poderia ter dito "atraidor". Desconfia-se de alguma ironia no suposto elogio, que se seguiu a uma troca de gentilezas farposas. Mas isso pouco se nos dá, como diria e escreveria o erudito deputado Roberto Campos.
Enigmática, mesmo, foi a legenda "José Passolongo, que faz diálise há nove anos", sob a foto dele, claro. Na mesma época, uma revista semanal publicou o seguinte período sobre o ex-governador já falecido, Chagas Freitas, no Rio de Janeiro: "Ele fez 21 cirurgias durante a vida, para tentar corrigir um defeito congênito."
Nos dois textos, os redatores fazem com o verbo "fazer" o que os governantes e políticos brasileiros têm feito com o povo. O verbo "fazer" é pau pra toda obra, já se sabe; era chamado antigamente de vicário (vigário, substituto), que faz e desfaz no lugar de outros verbos; costuma substituí-los para evitar repetições. Pode ser bem usado, sem abuso, mas também estuprado, como nesses dois casos.
A pessoa citada "faz" diálises há nove anos. Faz? Funciona como agente? É o médico ou o técnico que opera o equipamento substituto dos rins naturais? Se é o paciente, recebe o tratamento, submete-se ao tratamento. Como a foto no caso funciona como chamada para a reportagem interna, só o editor, o repórter e o fotógrafo, saltitantes de mãos dadas, poderiam saber. Ou o bom Deus, que já foi mais paciente com os brasileiros.
No texto revelador de que Chagas Freitas "fez" 21 cirurgias, não há tanta dúvida de que não fez nada disso porque não era cirurgião; era pessoa conhecida - o que o redator não pode pressupor para perpetrar sua obra. O que fez aqui com o "fez" também é comovente. Talvez estivesse com dor de barriga, por isso terá esquecido uma forma higiênica como "submeteu-se a 21 cirurgias". Esse negócio de confundir ativo com passivo não costuma dar certo.
O melhor desse texto, no entanto, é a necessária e portentosa informação complementar: "Ele fez 21 cirurgias durante a vida..." Sim, durante a vida. Não antes nem depois, que poderia fazer mal à saúde.
É bom lembrar que durante a vida passeia-se, ama-se, submete-se a cirurgias e sofre-se com alguns textículos. A vida serve para isso mesmo. Depois...

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pala PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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