São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Talidomida ainda faz vítimas no Brasil

MARCELO MENDONÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Luiz Henrique soares nasceu há 6 anos em Tatuí, interior de São Paulo, com todos os membros curtos e deformados.
Ele é vítima do uso da talidomida, medicamento surgido na Alemanha em 1956 como antigripal e calmante, que provocou deficiência física em 13 mil crianças de diversos países, depois de ingerido por mulheres grávidas.
A chamada "geração talidomida", nascida em finais dos anos 50 e início dos 60, foi mostrada com alarde nos meios de comunicação depois de a droga ter sido banida na Europa em 1961 e, no Brasil, em 1962.
Mas a fabricação, com base em pesquisas sobre seus efeitos benéficos no tratamento da hanseníase (lepra) voltou a ser admitida no Brasil em 65 -sob a forma de supervisão do governo federal.
Desde então, 44 novas vítimas foram registradas pelo Movimento de Reintegração do Hanseniano (Morhan), que trabalhou conjuntamente com o Ibiss (Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social) e o Ministério da Saúde.
Elas representam quase 20% do total de vítimas brasileiras reconhecidas oficialmente na "primeira onda" de casos, quando o uso era livre -cerca de 250.
O outro lado da história é o seguinte: a talidomida é eficaz contra a hanseníase e o Brasil, com cerca de 300 mil casos, é o segundo país nesta doença.
A mãe do menino Luiz Henrique, Eva, tomou talidomida por mais de seis anos no tratamento da hanseníase. Foi avisada pela médica que se ficasse grávida o bebê teria problemas. Segundo Eva, ela não disse que tipo de problema.
Outro caso recente ocorreu em Belo Horizonte: a empregada doméstica Luciane das Dores, 23, grávida, tomou vários comprimidos de talidomida em busca de algum alívio para as cólicas e enjôos que sentia. O remédio era do marido, que sofria de hanseníase.
Em abril do ano passado, nasceu Rafael. Sem braços e pernas. No final de junho, a criança não resistiu e morreu por outras complicações decorrentes da malformação congênita.
O uso indevido da talidomida no Brasil foi registrado em 1993 por um documentário da televisão britânica. Artur Custódio de Souza, 26, do Morhan, orientou a equipe da Yorkshire Television Productions na reportagem.
Foram quase cem horas de gravação, que resultaram em um especial de cerca de uma hora. Os relatos mostram que a desinformação se alia à negligência na fiscalização e à tendência bem brasileira de automedicação, resultando em que mulheres na idade fértil acabam ingerindo a droga e gerando filhos deformados.
A equipe chegou a enviar uma mulher de 23 anos à Brasifa, empresa atacadista farmacêutica, no Rio. Ela não teve dificuldade para comprar por US$ 17,00 (R$ 15,00) três frascos de talidomida originalmente destinados à exportação, com rótulos escritos em inglês.
Uma câmera oculta registrou a cena e o laboratório acabou sendo fechado pelo governo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) já pediu ao governo brasileiro informações sobre novos casos de malformação congênita decorrente da talidomida, e sobre eventuais medidas tomadas.
Em carta ao coordenador nacional de Dermatologia Sanitária do Ministério da Saúde, Gerson Fernando M. Pereira, o diretor da unidade de hanseníase da OMS, Shaik Noordeen , diz que em fevereiro os grupos europeus de vítimas da talidomida reavivaram a campanha contra a droga.
Mais de 300 cartas similares foram recebidas pela Organização Mundial de Saúde. Parte delas pedia à entidade que determinasse o banimento da talidomida.
O coordenador do Ministério da Saúde informou à OMS que há no Brasil uma atuação conjunta do governo com associações de hansenianos e portadores de deficiências no trabalho de educação sobre os efeitos da droga.
Mas apesar das precauções -que chegam ao desenho em negro do rótulo do medicamento -os vazamentos ainda acontecem.
Segundo Gerson Fernando, o único laboratório reconhecido pelo governo para a fabricação de talidomida é o da Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Minas Gerais, que fornece a droga para a Ceme (Central de Medicamentos) do Ministério da Saúde. Além disso, sua distribuição deveria ser restrita à rede pública de saúde.
Mas o Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde paulista informa a existência de farmácias de manipulação cadastradas no órgão para o funcionamento da droga, sob retenção da receita.

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