São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Crise de paradigmas em Itaguahy

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando aceitou o convite da Folha para falar sobre a obra de José Arthur Giannotti, o filósofo Paulo Eduardo Arantes fez uma única exigência: não queria saber nem o título do livro sobre Wittgenstein que seu ex-professor lança em breve.
Como comentar um livro no "escuro" não faz parte do figurino que deve seguir um circunspecto professor de filosofia da USP, o leitor pode perguntar o que, afinal, está querendo Paulo Arantes? Vingança fora de hora de ex-aluno? Pura molecagem?
Nada disso, como se verá. As posições de Paulo Arantes sobre Giannotti são tão pensadas, articuladas e enfáticas que até mesmo o título da entrevista que segue já havia sido ruminado por ele antes mesmo de a conversa começar.
O "Itaguahy" -propositalmente grafado em português arcaico e ao qual não há uma única menção ao longo da entrevista- não soará estranho para quem se lembra de um dos textos mais célebres de Machado de Assis. É lá, na vila de Itaguahy, que o Dr. Simão Bacamarte protagoniza "O Alienista".
Para fechar o círculo, basta dizer que a principal influência intelectual de Arantes é o crítico literário Roberto Schwarz, cuja leitura da obra de Machado de Assis marcou o discípulo de forma definitiva. O que talvez poucos saibam é que a única peça teatral de Schwarz, "A Lata de Lixo da História", escrita em 1968, chegou a ter o seguinte título provisório: "Crise de Valores em Itaguahy". Agora que o leitor está mais ou menos em casa, talvez não seja exagero afirmar que, com esta entrevista, o novo livro de Giannotti já nasce sendo pelo menos dois em um só. O primeiro, mais óbvio, é aquele que vai interessar os especialistas em Wittgenstein e os estudiosos da filosofia da lógica em geral. O outro, menos evidente, é aquele que desponta como um capítulo privilegiado, um daqueles momentos decisivos da "comédia ideológica local", para usar uma expressão cara ao entrevistado.
Mas que não se pense por isso que Arantes está bandeando da filosofia para a sociologia. Em nenhum momento da entrevista ele se furta da tarefa de indicar no interior de "Trabalho e Reflexão" -a grande obra de Giannotti-, o germe (ou o "ovo da serpente", como ele diz) do que deve vir à luz com o livro sobre Wittgenstein.
Aos que ainda tiverem fôlego para acompanhar os desdobramentos dessa querela intelectual um tanto cifrada, vale a pena prestar especial atenção à última parte da entrevista. Ali está o esboço de uma crítica marxista -talvez do maior intelectual marxista brasileiro- do rumo que tomou a filosofia de Giannotti.

Folha - Quem abre seu livro "Um Departamento Francês de Ultramar", sobre os filósofos uspianos, encontra logo no primeiro ensaio o seguinte cenário: depois de encarecer a fibra intelectual demonstrada por Giannotti num artigo de 1967, "Contra Althusser", o senhor abria um parêntese para exprimir votos de que ele conservasse a mesma independência no momento de encarar a atual onda wittgensteiniana. Isso num texto escrito por volta de 86 ou 87.
Até onde se sabe, o livro sobre Wittgenstein que Giannotti está lançando é francamente favorável à dita corrente. Você se enganou ou Giannotti cansou de ser do contra?
Paulo Arantes - Nem uma coisa nem outra. Aquela torcida era puro fingimento, mera brincadeira de família para uma futura falsa surpresa. Todo mundo sabia que o segundo Wittgenstein, o da virada "pragmática" no âmbito das filosofias da linguagem, fazia algum tempo lhe subira à cabeça, e que o livro que cedo ou tarde viria, certamente remaria a favor da maré, ainda que à maneira peculiar do seu autor.
Você me dirá: mas então é fato que o Giannotti mudou, você há de convir que largar Marx por Wittgenstein pode até ser um imperativo da vida moderna, sobretudo numa sociedade considerada pós-industrial. Porém, admitida a flagrante disparidade entre os personagens, não deixa de ser uma reviravolta espetacular. Não digo que não, pelo contrário, mesmo assim não faria muito sentido cobrar-lhe fidelidade, e, ainda por cima, fidelidade a um "paradigma" envelhecido e desacreditado, o da produção.
Aliás, seria um despropósito exigir de Giannotti que ficasse parado esses anos todos: não só não ficou, como era do seu dever de filósofo atualizado, como nunca deixou de se explicar, verdade que ao seu modo encrencado de sempre. Até onde vão os meus registros, a conversão wittgensteiniana remonta a 1983, um pouco antes talvez.
Assim, Giannotti não mudou, simplesmente antecipou, tanto quanto hoje em dia um filósofo pode fazê-lo, o horizonte ideológico rebaixado em que vivemos. Pelo menos em nome da simetria e da relativa coerência que ela sugere, Giannotti poderia muito bem intitular o novo livro "A Favor de Wittgenstein". Nada contra, trata-se de um clássico obrigatório em qualquer curso sério de filosofia da lógica. Aí o problema: custa crer que um leitor tarimbado (ponha tarimbado nisto) do "Capital" venha agora nos prescrever a dieta magra da "philosophia perennis" (no caso em pauta, um bom exercício para a sala de aula) e logo como chave-mestra da crise contemporânea, quando deveria ser no máximo um sintoma entre outros, se não for simples fé de ofício na era do a favor que estamos inaugurando. Dito isto, uma pausa para preveni-lo que ainda não li o livro indigitado.
Folha - Não seria essa uma aventura um tanto temerária, comentar um livro não lido?
Arantes - Veja a coisa como uma homenagem a uma das principais teses sociológicas de meu antigo professor. Segundo Giannotti, vivemos tempos bárbaros onde não é mais possível distinguir os que trabalham daqueles que simplesmente fazem de conta. Já num setor improdutivo como o meu, o dos serviços universitários, está cada vez mais difícil separar os que sabem dos meramente sabidos.
Imagino então que seja traço distintivo dos sabidos conceder entrevistas sobre assunto desconhecido. Sem blague. Ainda não li o livro em questão, a princípio por mera casualidade, a seguir, de caso pensado, sobretudo depois que combinamos esta conversa, achando que valia a pena correr o risco de quebrar a cara ao testar meio no escuro o que imagino perceber na longa evolução do meu "objeto".
No fundo, não estou arriscando grande coisa. Em primeiro lugar, porque se trata de um livro anunciado faz tempo, precedido por um ou dois artigos específicos e várias alusões estrategicamente distribuídas ao longo de intervenções em assuntos que não costumavam frequentar o antigo repertório do nosso filósofo -um livro enfim que nas rodas mais próximas já goza dessa espécie de fama antecipada própria das obras que coroam uma carreira. Em segundo lugar, porque Giannotti, como é sabido, funciona muito à base de generalização de idéias fixas, só me faltando, no caso desta última obsessão, o seu modo de apresentação.
Numa palavra, um livro preparadíssimo, desconfio que embrulhado de modo a deixar os especialistas indignados e seus velhos amigos de esquerda perplexos. Além do mais, Giannotti não é um autor qualquer, e o livro que ainda não li por certo não será apenas o enésimo estudo de boa qualidade sobre tópicos wittgensteinianos consagrados. Os entendidos poderão até torcer o nariz, mas errarão o alvo. A companhia em que se encontra Giannotti não é bem essa. E se tudo correr bem, como espero, pode ser até que, a despeito de sua inegável cor local, a crise de paradigmas vivida por José Arthur Giannotti tenha alcance mundial.
Folha - Na sua opinião Giannotti continua o mesmo, mas parece que mudou, e muito. Como você vê então a largada e o ponto de chegada dessa reviravolta, se é possível definir assim isso que aparenta ser uma grande manobra de reengenharia filosófica?
Arantes - Muito bem, arrisquemos uma hipótese, sempre na base de antecedentes conhecidos e confiáveis. Giannotti de fato continua o mesmo, porém, como todo mundo, mudou de paradigma. O barateamento atual converteu a fórmula abre-te-sésamo "mudança de paradigma" numa espécie de sanção epistemológica rotineira para toda sorte de ajuste numa conjuntura cada vez menos transparente.
(continua)

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