São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sobre o vazio

CAIO TÚLIO COSTA
FALAR DA MODA ESTÁ NA MODA.

Sobre o vazio
Altman reproduz instantes tão falsos quanto verdadeiros de um mundo onde mentira e verdade coexistem sem fronteiras nem contradição
O assunto ganha espaço com o último filme de Robert Altman, "Prêt-à-Porter", expressão francesa que significa "pronto para usar" e define um ramo especial da indústria da moda, a das roupas prontas para serem vendidas e usadas.
A indústria da moda cresce e aparece ao deixar de lado a alta costura, a roupa sob medida. Ganha mais e mais presença internacional ao explorar com criatividade aquilo que faz a moda ser o que é: o efêmero, ou, então, o eterno retorno do novo, como definiu um filósofo, Walter Benjamin, em 1939, um ano depois da criação do náilon, sete depois de Nina Ricci se instalar em Paris, 15 depois de Coco Chanel criar seu perfume Nº 5.
Vive-se, sem dúvida, nas democracias modernas, a era do vazio, conforme costuma dizer um pensador que se debruçou sobre a moda, o francês Gilles Lipovetsky. A moda é a forma superior de expressão da insignificância própria da dita contemporaneidade. Um tempo cuja característica é a impossibilidade de vivê-lo e se define pela necessidade de suportá-lo.
Robert Altman, que vem de uma bem-sucedida história no cinema calcada na observação dos costumes ("Nashville", "Cerimônia de Casamento", "Short Cuts"), resolveu agora cutucar não uma, mas um monte de onças com vara curta.
Deu certo. Apesar de elogios aqui e ali, apesar de participações desinibidas de alguns criadores de moda no filme, o mundo da moda em geral de-tes-tou "Prêt-à-Porter": frívolo, superficial, mentiroso, preconceituoso... Karl Lagerfeld, o alemão-chefe da Maison Chanel, conseguiu até apoio da justiça alemã contra o filme.
É compreensível que os donos da moda e todos os que giram em torno dela -estilistas, produtores, modelos, fotógrafos, jornalistas especializados- encontrem motivos para se queixar de Altman.
No filme, nenhum criador de moda diz coisa com coisa, nenhuma modelo sugere inteligência e nenhum jornalista demonstra capacidade (o repórter do "The Washington Post", um dos mais influentes jornais americanos, manda reportagens copiadas da televisão; as especialistas em moda apenas competem entre si e Kim Basinger faz a repórter burra de TV -por sinal, na sua melhor atuação).
Não. Robert Altman não critica o mundo da moda, ele o desvela.
O diretor norte-americano recria estilistas e seus satélites para iluminar um ambiente propício à celebração da própria moda, sinônimo de fatuidade -em seus dois sentidos. E a moda existe porque é do transitório que ela tira sua sobrevivência, ela que só é aparência e até mesmo porque é dela, da aparência, que vive.
O resultado é um instantâneo quase amargo para quem ali se reconhece. Se o filme caricaturiza estilistas, o faz porque eles próprios se preocupam demais em moldar a caricatura de si mesmos.
Altman reproduz instantes tão falsos quanto verdadeiros de um mundo onde mentira e verdade coexistem sem fronteiras e sem contradição.
O final do filme, óbvio na surpresa que apresenta, só reforça a natureza mesma na moda. Se ela é a vitória da frivolidade sistemática, Altman lhe confere uma racionalidade baseada na aparência daquilo que ela realmente é: um vazio só, povoado de sonho e vaidade.

Ilustração: "Nu na cidade"(1969), fotografia de Duane Michals

Texto Anterior: GÁS TOTAL!
Próximo Texto: Heineken Concerts; Charme inglês na cidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.