São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Youssou N'Dour traz os sons da diáspora

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Falar de "influências ocidentais" no caso de Youssou N'Dour é um equívoco. Eis provavelmente a primeira constatação que fará o espectador, quando esse fantástico compositor e cantor senegalês subir ao palco do Heineken Concerts como convidado de Carlinhos Brown.
N'Dour é a prova de que a música africana não se compõe (felizmente) só de "raízes", e que seu diálogo internacional começa com o reencontro com a própria África da diáspora.
A fórmula pop de "Seven Seconds", canção em pareceria com Neneh Cherry que fez N'Dour estourar no Brasil, depois de mais de uma década de sucesso na Europa, não se diferencia da desenvoltura de outros trabalhos seus com ritmos negros da Jamaica ou Cuba.
Como frisou em conversa por telefone com a Folha, de Dacar, N'Dour faz do diálogo internacional um meio de reencontrar e enriquecer sua própria cultura.
E, se suas letras insistem nas relações políticas entre a África e os países do Primeiro Mundo, é porque a autoridade artística de N'Dour deve menos ao "show business" do que à herança de sua casta de "griot", o narrador oral que divulgava em forma de canção, de aldeia em aldeia, a história de seu povo, acumulando o poder de conselheiro e mesmo de estrategista político.
A experiência brasileira constitui, portanto, um complemento indispensável no périplo de N'Dour, neste que é afinal o maior país africano da diáspora.

Folha - Na canção "New Africa", você utiliza explicitamente as idéias de Cheick Anta Diop sobre a unidade africana. Elas ainda são válidas hoje?
Youssou N'Dour - Sim. Num momento em que se enfrentam muitos problemas ligados a fronteiras e rivalidades étnicas, torna-se necessário restaurar o ideal de Cheick Anta da unidade africana. Não há outra saída. Os detentores do poder devem compreender que é preciso passar a uma nova fase e dar prioridade à África em lugar dos interesses pessoais.
Folha - Você acredita que a "world music" realiza esse ideal de união, não apenas africano, mas em nível internacional?
N'Dour - Não é de agora que a música desempenha um papel de motor de reunião dos povos e culturas. Apenas os artistas podem se comunicar com povos que não falam a mesma língua. A música hoje se confirma por meio do intercâmbio de sonoridades variadas.
Folha - Você não teme que os elementos trazidos de diferentes lugares do mundo possam levar à perda da cultura das origens?
N'Dour - De modo algum. Aceitar as influências é respeitar ainda mais as origens. Quando uma cultura se fecha ao contato com o mundo, a música se estagna. Na África, há pessoas que defendem o fechamento, mas são as pessoas abertas que estão realmente valorizando a tradição.
Desde a repartição da África, desde a escravidão que obrigou os africanos a abandonarem sua terra, nossa música se espalhou por todos os cantos do mundo. Hoje cada continente detém uma parte da África. Se essas diferentes partes voltam a se encontrar, é a música que sai ganhando. Apenas esse processo pode trazer dinamismo à música tradicional.
Folha - Em suas canções, você frequentemente menciona o conselho dos anciãos, nas tribos africanas, como uma instância política importante. Acredita que esse conselho seria um modelo democrático para a África?
N'Dour - A democracia moderna foi trazida para a África de modo problemático. Existe um outro tipo de democracia entre as populações das aldeias e comunidades, que é mais próximo do real. Os anciãos sempre tiveram soluções fáceis para a África. A democracia do Ocidente não pode ser percebida automaticamente como uma boa democracia, embora provavelmente seja boa na origem, porque não se ajusta à realidade africana.
Folha - Você gravou um disco em homenagem a Nelson Mandela. Qual sua relação com ele?
N'Dour - Quando fiz o disco, não tinha relações pessoais com ele. Queria apenas divulgar suas idéias e a história do apartheid entre pessoas analfabetas, que não compreendiam o que diziam os noticiários. Alguns anos mais tarde, quando Mandela saiu da prisão e lhe mostraram o que eu tinha feito, ele gostou muito, e então nos encontramos e foi muito bonito.
Folha - Qual a importância dos provérbios "wolof" que você utiliza em suas canções? Eles não se deixam traduzir facilmente para o inglês ou o francês.
N'Dour - Sim, isso é muito senegalês, nossa sabedoria está contida nesses provérbios. O "wolof" é uma língua sinuosa. Quando queremos dizer algo, damos voltas em torno do assunto, existe uma diplomacia. Acho que foi assim que nasceram esses provérbios. Tenho muito interesse em cantar em inglês ou francês, mas não é a mesma coisa.
Folha - Você já tocou alguma vez com Carlinhos Brown?
N'Dour - Nunca tocamos juntos, mas acredito que no momento em que nos encontrarmos as coisas vão acontecer. O que mais aprecio na música brasileira é a percussão. Sei que vou enlouquecer assim que chegar aí.

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