São Paulo, sábado, 8 de abril de 1995
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Universos Paralelos

Pode parecer coisa de ficção científica, mas é uma realidade duramente concreta: existem dois universos paralelos ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo no Brasil de hoje, como bem o mostrou texto de Marcelo Coelho publicado na edição de ontem da Folha.
Num desses universos, consomem-se BMWs e bugigangas eletroeletrônicas importadas e fala-se um português mais ou menos de acordo com a norma culta. Vive-se sob a proteção de um teto, próprio ou alugado, ainda assim um teto.
No outro, o consumo mal e mal atinge algumas centenas de calorias por dia e a língua falada parece ser uma variante ainda não identificada do português, provavelmente provocada pela desnutrição infantil e pela falta de ensino básico. Os únicos abrigos disponíveis são as caixas de papelão em que os importados chegaram ao país e os vãos de pontes ou viadutos sobre os quais trafegam as BMWs.
As crianças do primeiro universo passam a maior parte do tempo em escolas, geralmente privadas, e a esmagadora maioria delas aprende a ler e escrever. Vivem em núcleos chamados de famílias, algumas mais outras menos organizadas.
Já as crianças do segundo universo conhecem no máximo rápidas passagens por escolas públicas que pouco ensinam e não aprendem a ler nem escrever, como, de resto, não aprenderam a falar. Passam a maior parte do tempo tentando sobreviver e, para esse fim, debruçam-se nas janelas das BMWs pedindo um trocado ou vendem Mentex. Algumas conhecem seus pais naturais, mas nem de longe se poderia sugerir que vivem em uma estrutura familiar. Muitas das que chegam à maturidade acabam seguindo carreira na prostituição ou no crime. A maioria apenas sobrevive em biscates e subempregos. Em geral morrem mais cedo que seus pares do outro universo.
Falar em universos, entretanto, é recorrer a uma metáfora que tem limites, pois afinal trata-se de indivíduos convivendo na mesma sociedade. Enquanto essa mesma sociedade não encontrar os meios para promover uma distribuição de renda adequada, haverá mais que estranhamento entre essas partes. É uma patologia que pode degenerar em esquizofrenia e agravamento da crise social, se nada for feito.

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