São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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A BORBOLETA DO PARNASO

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 23/04/95
No Mais! de 9.4.95, à pág. 5-8, no artigo "A borboleta no parnaso", de Leyla Perrone-Moisés, erros de digitação alteraram o sentido de duas frases. No primeiro parágrafo, leia-se: "Só tive duas ocupações em minha vida, dormir e não fazer nada" (e não dormia). No quarto parágrafo, leia-se: "Valéry contestou..." (e não constatou).
A BORBOLETA DO PARNASO
Ele se auto-intitulava "a borboleta do Parnaso", e dizia, parafraseando Platão: "Eu sou coisa ligeira e vôo à toa, de flor em flor e de objeto em objeto". Num século de pompa e circunstância, ele tinha a delicadeza de não se levar a sério. Subestimava seu talento, pretendia apenas divertir os ouvintes contando historinhas rimadas. Também afirmava ser muito preguiçoso: "Só tive duas ocupações em minha vida, dormia e não fazer nada."
Muito malandro é o que ele era, porque nada do que dizia era verdade. A leviandade alegada era uma maneira de passar à margem do poder e conservar sua independência. A pretensa preguiça é desmentida por uma obra extensa e trabalhada no mínimo detalhe.
Assim como enganou seus contemporâneos, enganou também a posteridade. Passou a esta como um amável velhinho contador de fábulas para crianças. Na verdade La Fontaine é, em muitos momentos, amargo e feroz, inclusive com relação às crianças, que ele não apreciava tanto assim. "Essa idade é sem piedade", observa ele em "Os dois pombos"; e em vários textos caracteriza os meninos como "fripons" (delinquentes).
Alguns leitores não acreditaram nessa fábula do bom velhinho. Rousseau denunciou-o como um autor de má influência para a infância, pelo pessimismo e pelo cinismo de sua moral. Valèry constatou sua imagem de "sonhador distraído", e considerou-o como um grande artista, um poeta que sabia tudo de seu ofício.
O século de La Fontaine, não por acaso chamado de "grand siècle", desenrolou-se todo à luz (ou à sombra) do Rei Sol, Luís 14. Este favoreceu um extraordinário florescimento das artes do espetáculo (teatro, música, dança) e da decoração, também concebida como cenografia (arquitetura, pintura, paisagismo). Com a condição de que o ator e espectador nº 1 fossem ele mesmo. Das boas graças do Rei dependia a subsistência dos os artistas. La Fontaine conseguiu, com muito jeitinho, cair fora do grande teatro de Versalhes, e sobreviver muito bem, apesar de tudo. Em sua mocidade, tivera uma experiência que o marcaria para sempre. Essa experiência poderia ser contada como uma fábula.
Um jovem Rei Leão foi convidado, por seu ministro Raposa, a um jantar na casa deste último. Quando chegou lá, viu um palácio maravilhoso, com um jardim de sonho, provido de lagos e fontes, grutas e estátuas deslumbrantes, tudo muito mais bonito do que na casa do Rei. A noitada contou ainda com espetáculos apresentados por novos artistas que o monarca nem conhecia. Em vez de sair agradecido, o Rei saiu furioso. Como é que esse ministro ousava viver melhor do que ele? E com que dinheiro, ele que era ministro das Finanças, mantinha tudo isso? O Rei Leão mandou então prender o ministro Raposa, pelo resto de seus dias, confiscou tudo o que era dele e contratou todos os seus artistas para construírem e entreterem um palácio maior para ele mesmo. Moral (cínica) da história: come bem quem come quieto.
Essa história aconteceu, exatamente como narrei, com o ministro Fouquet e Luís 14, e os palácios respectivos são Vaux-le-Vicomte e Versalhes. Ora, La Fontaine era um dos artistas protegidos por Fouquet, e o poeta nunca perdoou o rei. Mas como também aprendeu a lição, tratou de não o demonstrar demasiado. Passou a viver sob a proteção de grandes damas (Madame de la Sablière, Madame d'Hervart) em seus castelos longe da corte, ao mesmo tempo que assegurava, nesta, a simpatia de outras damas poderosas (Madame de Thiange, Madame de Montespan), que acalmavam o Rei quando este se lembrava do impertinente fabulista.
Assim, longe das patadas do Leão, podia escrever coisa como esta: "Defino a corte como um lugar onde as pessoas, tristes, alegres, dispostas a tudo, a tudo indiferentes, são aquilo que agrada ao príncipe ou, se não o podem ser, tratam ao menos de o parecer. Povo camaleão, povo macaco do dono, dir-se-ia que um espírito anima mil corpos. É aí que as pessoas são simples mecanismos." E a moral da fábula é a seguinte: "Divirtam os reis com sonhos, bajulem-nos, ofereçam-lhes amáveis mentiras. Por maior que seja a indignação que encha seus corações, eles morderão a isca, e vocês serão seus amigos."
Ninguém, naquele momento, ousava publicar uma crítica tão dura ao rei e ao cortesãos. Mas como tudo isso está numa fábula ("O enterro da Leoa"), passava. Também está nesses trechos, como em outros, a gênese das fábulas, que era a observação dos homens de seu tempo e sua animalização (leões, camaleões, macacos). E, no fim do primeiro texto citado, uma referência polêmica a Descartes, que pretendia serem os animais simples mecanismos.
La Fontaine humanizou os animais, mas foi um atento observador dos bichos de verdade, cuja aparência e movimentação ele sabia captar em poucos traços. Tendo herdado de seu pai a poética profissão de "mestre das águas e das florestas" (guarda florestal), passou grande parte de sua vida no campo. Assim a natureza, praticamente ausente da literatura francesa de seu século, aparece sob todos os seus aspectos em sua obra. Pela mesma razão, nela aparecem também os camponeses, os vilões, os artesãos, os moleques, toda aquela gente humilde excluída da corte e das obras aristocráticas.
La Fontaine ficou célebre por suas "Fábulas". Mas cultivou outros gêneros, como os "Contos", de fundo erótico e inspirados de Bocaccio, ou a poesia lírica elevada como em "Adônis". Foi o único grande autor francês do século 17 que não escreveu para o teatro. No entanto, suas fábulas são um pequeno teatro com animais atores extremamente expressivos e diálogos de uma vivacidade dramática.
Todas as características da arte de seu século se encontram nessas fábulas: a obediência à regra maior, que era a de agradar ao público; a análise aguda e pessimista dos comportamentos humanos; a moral baseada na prática social e no equilíbrio pessoal. Em La Fontaine há um pouco das crônicas de Saint-Simon, algo das comédias de Molière, alguns alexandrinos sublimes como os melhores de Racine, certas máximas dignas deLa Rochefoucauld, numa mistura que era só dele.
Embora a grande maioria de suas fábulas fossem apenas novas versões de fábulas antigas, do grego Esopo ou do indiano Pilpay, o adjetivo que seus contemporâneos mais usaram a seu respeito foi "original". Assim o qualificaram, entre outros, La Bruyère e Perrault. Toda a originalidade de La Fontaine está na sua maneira de dizer. La Fontaine manejava a língua e a versificação com uma liberdade e uma facilidade que só se conseguem com muito talento e trabalho. O que foi reconhecido pelos mais atentos de seus leitores. Já no século 18, o crítico Marmontel dizia que ele possuía "a arte de dissimular a arte". O que Valèry reafirmaria: "a facilidade, o cúmulo da arte."
Os melhores momentos de suas 1ábulas são efeitos de concisão, de sugestão visual e de surpresa vocabular ou métrica. A mistura de registros discursivos ou de tipos de verso (o verso variado, precursor do verso livre) criam efeitos marcantes. Podemos nos esquecer qual era a moral da fábula, mas não suas personagens e falas, para sempre fixadas em palavras certas. Os versos de "A leiteira e o pote de leite" são saltitantes como a moça da história, leves e curtos como sua roupa estival; o canto inútil da cigarra está na onomatopéia de "ayant chanté tout l'été" (tendo cantado o verão todo); a tola pretensão do corvo já está no primeiro verso, "MaŒtre Corbeau sur un arbre perché" (Mestre Corvo empoleirado numa árvore), no contraste entre o título de Mestre e a ridícula posição em que ele se encontra, assim como seu grasnido é evocado pela abundância de "r" no verso em questão.
La Fontaine detestava os gêneros longos, e buscava a brevidade. Isso faz com que ele corresponda a nosso gosto atual. Ele tinha todas as qualidades que Calvino propõe para literatura do próximo milênio: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade. E algumas de suas fábulas orientais ou científicas o tornam um precursor dos modernos fabulistas, o próprio Calvino ou Borges.
Durante séculos, discutiu-se a veracidade e a moral de La Fontaine. Hoje, não tem a menor importância saber que a cigarra da natureza não "canta" e os corvos reais não comem queijo. E sua ética pragmática é mais facilmente aceita do que em seu tempo. Se suas fábulas passaram à posteridade, e continuam a serem apreciadas hoje como há três séculos, não é por seu conteúdo científico ou moral, mas pela forma artística. Os franceses as sabem de cor porque elas contêm formulações notáveis, prazerosas ao ouvido e estimulantes para a imaginação. Se não me engano, isso ainda se chama poesia.

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