São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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As fugas de um mestre

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O musicólogo paulista Régis Duprat, 65, alterou em essência a paisagem da música colonial brasileira. O produto mais ambicioso desse projeto de balançar utopias é o recém-lançado livro "Música na Sé de São Paulo Colonial".
O volume contém algumas das mais significativas descobertas musicológicas das últimas três décadas. Parte dele foi publicado pela Universidade do Texas em 1977. Com base no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, Duprat traz à luz a fecunda atividade musical da Sé de São Paulo nos séculos 17 e 18, por muito tempo tida como incipiente, e assenta o catálogo da obra do compositor André da Silva Gomes (1752-1844), mestre-de-capela da catedral paulistana de 1774 a 1827. O livro traz os "incipits" (partituras do tema inicial com a clave, instrumentação e número de compassos) de todas as peças.
"Com esta obra se encerra uma etapa das pesquisas musicológicas com fontes primárias", afirma Duprat. "À nova geração cumpre formular hipóteses e teorias sobre o material estabelecido".
O pesquisador é responsável pela derrubada do mito sacro da música colonial. "Produziu-se muita música profana na época, principalmente para teatro. E é provável que os compositores servissem tanto o bispado como a Ópera".
A declaração parece óbvia. Mas dissolve um preconceito. Antes de Duprat, idealizava-se o ambiente da colônia como uma espécie de Cidade de Deus mulata.
Duprat descortinou cena bem diversa ao longo de 36 anos de investigações em arquivos públicos e eclesiásticos.
Desencavou em 1960 no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP aquela que foi considerada por duas décadas como a mais antiga e única composição profana sobrevivente: o "Recitativo e Ária" (1759), para soprano e cordas, de um anônimo baiano.
Em 1984, ele bateu a própria marca quando encontrou obras ainda mais antigas, datadas dos anos 20 do século 18, na capela de Mogi-das-Cruzes (SP).
Entre elas se destacam dois salmos em estilo renascentista do compositor branco Faustino do Prado Xavier (1709-1801) e a ária "Matais de Incêndios, ó meu lindo Aylelê", para quatro vozes e baixo. São estas as mais antigas partituras produzidas na colônia de que se tem conhecimento.
A descoberta de Gomes põe em questão a concepção exótico-mulatocêntrica de Lange. Nascido em Lisboa e emigrado ao Brasil aos 21 anos de idade, Gomes ressurge no livro de Duprat como um dos grandes mestres do período. É a prova da existência da alta erudição na colônia.
"Tanto pelo número de obras como pela qualidade, Gomes merece estar ao lado de José Emerico Lobo de Mesquita e José Maurício Nunes Garcia", compara, referindo-se respectivamente aos mestres mineiro e fluminense, ambos mulatos e contemporâneos de Gomes.
Este escreveu exclusivamente partituras sacras na mesma época em que atuavam na Europa o austríaco Mozart (1756-1791) e o alemão Beethoven (1770-1827).
O exercício de Gomes corresponde ao chamado período clássico vienense. Mas diferentemente de Mesquita ou Garcia, pouco se nutriu do estilo: "Ele se distingue pelo uso do contraponto cerrado, da fuga e do baixo-contínuo. É o compositor colonial que mais guarda influência do Barroco, não obstante ter cultivado a linha melódica clássica".
Até hoje Duprat recolheu 137 peças, entre motetos, missas, antífonas e salmos. "É paradoxal, mas os compositores mineiros estavam mais 'up to date' com o que se fazia na época, enquanto Gomes, formado em Lisboa, mantinha um estilo mais arcaico."
Algumas peças de menor fôlego de Gomes podem ser ouvidas em em CD lançado no último ano pela Paulus. São acessíveis e lembram os barrocos europeus. A intenção do musicólogo é produzir outro disco até o fim do ano.
Mas ainda existe um componente fundamental para o retrato de Gomes: seu talento teórico. Além de ter sido nomeado, em 1797, mestre régio de gramática Latina, aposentando-se do cargo no mesmo ano em que se retirou da capela, Gomes escreveu por volta de 1790 a "Arte Explicada do Contraponto" (leia trechos abaixo). Assessorado por uma equipe de três orientandos, Duprat trabalha na edição crítica e fac-similada da obra, a sair até o fim do ano.
Trata-se do único exemplar encontrado até agora de texto teórico produzido sobre música no Brasil Colonial. Nele, Gomes se mostra racionalista e partidário das idéias iluministas.
Apesar disso, o compositor assumiu o cargo na Sé para restaurar a religiosidade na música praticada na capela. Duprat supõe que o antecessor de Gomes, Antonio Manso, foi exonerado em 1774 pelo bispo dom Manuel da Ressureição por fazer música excessivamente profana e produzir para a Casa de Ópera da cidade, na época com 2.000 habitantes.
Gomes tratou de varrer o bel canto para baixo do tapete da Sé. Duprat é capaz de citar trechos e mais trechos de clima teatral profano na produção do mestre. A colônia não era tão étnica e papa-hóstia quanto desejariam alguns mitógrafos.

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