São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O assassinato de Madame Bovary

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é preciso ser feminista para notar que Flaubert assassina Emma Bovary. Com que motivo? A auto-punição, com certeza, tem alguma parte nisso; mas Flaubert era forte demais para ser destruído, tão cedo, pelo princípio da realidade. Emma é, de uma vez só, menos forte e mais cheia de vitalidade do que seu criador. Temos, infelizmente, de reconhecer que o motivo deste assassinato é a inveja -inveja da vitalidade de Emma. Nessa tragédia, o sadismo autoral torna-se tão importante quanto o masoquismo.
O Flaubert que mais tarde viria a compor a magnificência hedionda de "Salammbô" (1858-1862) já estava presente na criação de "Madame Bovary" (1852-1856). São mais extremadas as sensações de "Salammbô", as cores muito mais espalhafatosas, a temperatura sobe de forma extravagante e, com tudo isso, o desejo -nosso e de Flaubert- parece menos dominante.
Como um crítico literário incuravelmente fora de moda, eu continuo perdendo a cabeça por Emma Bovary, cada vez que releio a obra-prima de Flaubert. E isto me parece uma experiência estética tão válida quanto sentir a força do desejo admirando um nu de Renoir.
Emma talvez seja a mais persuasivamente sensual de todas as criaturas da ficção. A Cleópatra de Shakespeare, como seu Falstaff, é inteligente demais para não ver com ironia as suas próprias qualidades, mas a pobre Emma literaliza a sua imaginação sexual. Ela dá vazão a um modo muito diverso de fantasia do que o do narrador, ou do próprio Flaubert. O narrador tem muito menos afeto por Emma do que Flaubert (ou do que nós); e no entanto o assassino é Flaubert, e não ele.
Em termos shakespeareanos, o narrador é Iago, Flaubert é Otelo e Emma, Desdêmona. das três identificações, a menos extravagante é ver o narrador como Iago. Pelo narrador de Flaubert só se pode sentir o mesmo respeito incômodo e algo a contragosto que se sente por Iago. Um e outro propõem emoções para eles mesmos e só então se dão a chance de experimentá-las.
A despeito de suas histerias, Emma não é uma personagem de tragicomédia. O narrador tem outras intenções, mas Emma possui toda a grandeza de sua vitalidade, a intensidade heróica da sexualidade, e essa elevação faz dela um caso raro, a heroína trágica de uma obra estóica, irônica e, nalgumas ocasiões, grostescamente cômica.
A maestria selvagem de Flaubert transmite uma imagem encarnada do desejo que é praticamente universal: a aura de Emma é ampla o bastante para acomodar tanto a sexualidade feminina quanto a masculina. Os objetos do seu desejo não têm muita importância, nem para Flaubert, nem para o leitor. Talvez tenham um significado maior para o narrador do que para Emma, cuja única preocupação é a de que exista sempre um objeto, ou pelo menos a expectativa de um novo objeto, numa série sem fim. Emma é, portanto, a representante de todo homem, não menos do que de toda mulher com interesse sexual normal -muito embora a sexualidade seja o único domínio onde ela fica acima da média.
Emma está para o ideal da paixão erótica como Dom Quixote para o ideal do jogo, do ludismo; e como Quixote ela será, afinal, assassinada pelo princípio da realidade, cujo nome é Flaubert, ou Cervantes. O domínio do lúdico é muito mais vasto do que o da fantasia erótica e, no que toca à dignidade estética, perto de Quixote, Emma fica minúscula. Mas sua própria dignidade estética é considerável; a quem, mais do que ela, se pode preferir em toda a obra de Flaubert?
Ninguém como ela se ofereceu à imaginação de Flaubert, e seus descendentes permanecem conosco até hoje. Emma sobrevive no aviltamento erótico dos romances de banca, da mesma forma que Dom Quixote reaparece em romances baratos de cavalaria.
Em termos da ordem da realidade, Dom Quixote é de uma loucura sublime; mas atinge o Sublime em si na ordem do lúdico. Não existe, para Emma, uma ordem do jogo; e, no universo da prova de realidade, ela se mostra quase absurdamente suicida.
Sua auto-imolação contrasta estranhamente com a de Anna Karenina. O moralismo apocalíptico de Tolstói destrói sua Anna, mas há uma espécie de alívio trágico nessa morte. Os sofrimentos de Anna são grande demais para que se permita que continuem. Em comparação, os de Emma parecem insignificantes, mas ela tem apego demais pelo prazer para ser capaz de sustentá-los. Sua morte não tem grandeza, mas mesmo assim ficamos imensamente comovidos, porque tamanha perda de vitalidade sexual é uma derrota no sentido bíblico da Bênção: "mais vida à vida".
A morte de Emma significa menos vida, menos possibilidades de prazer natural, menos de nós mesmos para gastar, nos dias que ainda nos restam.
À sua maneira, bem mais abafada, Emma poderia pertencer a um poema de Keats ou Wallace Stevens. Seu narcisismo é uma virtude, mas o romance de Flaubert se recusa a providenciar para ela algum contexto onde sua absorção em si mesma pudesse adquirir qualquer aura de claridade.
Irremediavelmente insípida de mente e de espírito, incapaz de eleger um objeto adequado do desejo, mesmo assim não nos cansa nunca, porque a despeito de tudo ela permanece uma imagem do desejo. Nós todos nos comovemos com aquele elemento nela incapaz de aceitar perdas eróticas.
Nós, de nossa parte, sofremos nossas perdas e ou conseguimos sublimá-las, ou ficamos mais duros depois. Emma está tão longe quanto possível do admirável aforisma de Nietzsche: "O que não me destrói me fortalece." Suas perdas vão enfraquecendo-a e acabam por destruí-la. Ela representa, assim, algo de teimoso que existe em nós, algo talvez de infantil, que se recusa a acreditar que um objeto possa estar perdido para sempre.
O que Freud chamava, numa bela expressão, de "trabalho do luto" simplesmente não está disponível para ela. Mas está, sim, para Flaubert, e por meio dele para seus leitores. Embora ele a mate, Flaubert elabora o trabalho do luto por ela, um trabalho que toma a forma de sua obra-prima, o mais puro de todos os romances na forma, economia e (como dizia Samuel Johnson) na representação justa da natureza geral das coisas.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

Texto Anterior: Um contraponto da era colonial
Próximo Texto: Um aprendiz das utopias do sionismo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.