São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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As agonias da confissão

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Para o Amigo que Não Me Salvou a Vida" surgiu na França em 1990. Logo converteu-se num enorme sucesso editorial: 30 semanas na lista dos livros mais vendidos. Dezenas de resenhas, na Europa e nos EUA, elogiaram o talento literário do autor, a destreza no tratamento do tema da Aids e sua coragem ao revelar fatos da vida privada de pessoas famosas como Isabelle Adjani e Michel Foucault.
Entre nós, Mariza Campos da Paz, tradutora do livro editado pela José Olympio (144 págs., R$ 16,00), dedicou-lhe um belo trabalho, feito de carinho e profunda sensibilidade psicanalítica. Em 1991, o autor, Hervé Guibert, morria de Aids.
Cinco anos depois, o impacto do livro é o mesmo. Pudera, trata-se de Aids! Cada vez que se fala da morte a curto prazo é sempre como se fosse a primeira vez. Do mesmo modo, o problema ético levantado pela revelação da intimidade de terceiros continua polêmico, agora como antes.
Fora disso, não vejo como a arte, a ciência, o conhecimento, o bom senso, a decência ou a felicidade de cada um podem beneficiar-se dessa intrusão desrespeitosa e indelicada na privacidade de outrem. Em Guibert, como em tantos outros, vejo nisso violência, o que não lhe retira o mérito de bom escritor e de testemunha privilegiada de seu tempo.
No tom geral, o livro segue os passos de Genet, Burroughs ou Nabokov, no que toca à desconstrução de tabus morais. Em monólogos proustianos, Guibert mostra o céu e o inferno de nossas paixões, num exercício de honestidade comovente. A proximidade da morte reconcilia baixeza e grandeza. Em todos nós, sugere ele, mora o pior e o melhor: Fiodor, Dmitri, Ivan e Alexei Karamazov.
Quando não se pode mais voltar atrás; quando se beira o nada, pequenos preconceitos e grandes narcisismos são jogados para o alto. Muito pouca coisa importa. Guibert e seus amigos correm contra o tempo. Disputam pedaços de vida, no dia-a-dia. São todos intelectuais, artistas ou homens de negócio; todos circulam pelo rico Atlântico Norte e todos carregam uma agonia invasiva que tentam estancar com férias em lugares exóticos, sofisticadas discussões artísticas ou atitudes blasées diante de tudo.
A impostura é deliberada. Faz parte do jogo que busca adiar o fim da partida. Ninguém, no fundo, espera; mas todos fingem esperar, pois a mais fina esperança ainda dói menos do que a resignação. À primeira vista, nada menos nordestino; e, no entanto, como tudo é severino. O mais terno humano nasce quando Guibert parece entregue ao mais desolador sofrimento.
Este, penso, é o Guibert admirável. O que vê de longe a tolice mundana e compreende que um dia a luz apaga, todo som e fúria cessam, "não com uma explosão mas, com um sussurro". O outro Guibert é prisioneiro da forma de vida dominante. Como uma personagem de "Os Histéricos", de Bernadet e Teixeira Coelho, quer dizer tudo, revelar tudo, até que as palavras se esgotem em meros automatismos sonoros.
A sofreguidão com que confessa lembra, ironicamente, o que Foucault chamou de compulsão à confissão, típica de nossa cultura imersa em culpa. Em certas passagens, o texto é um verdadeiro ato de contrição de quem pensa ter-se enganado quanto ao sentido da vida, do amor e da morte.
Guibert confessa, confessa e confessa. Vasculha o passado, evoca sonhos de amor, geometriza explicações, agarra-se a trapos de crenças quase esquecidas e, quando tudo se exaure, abandona-se ao pedido do poverello de Assis: "ajuda-me a suportar o que não posso compreender. Ajuda-me a mudar o que não posso suportar". A confissão quer arrancar do corpo e das entranhas o sentido da vida perdido na via crucis da Aids.
Piera Aulagnier dizia, há alguns anos, que o direito ao segredo era a condição para poder pensar. Nosso sentimento de identidade, continuava ela, deriva, em grande parte, da capacidade que temos de dizer o que, quando e como a certas pessoas em certas ocasiões. Quando o pensamento corre à nossa revelia, quando seu curso perde o prumo, é a individualidade que se desfaz.
Guibert quis desafiar tudo isto. Quis fotografar o próprio espírito, no instante da máxima aflição. Retalhou sentimentos, lembranças e julgamentos; pôs no mesmo plano o que se diz e o que se oculta, o que se pensa e o que se faz, tentando realizar um dos mais renitentes devaneios de nossa civilização: viver além do bem e do mal. É aí que foi, por vezes, impiedoso, tratando a si e aos outros como quem não leva em conta o que é fato e o que é valor.
Quando fala da Aids, Guibert é exemplar. Seu discurso é puro impulso afirmativo para a vida e para a solidariedade. Quando, ao contrário, descreve o "parisianismo" de seu ambiente, torna-se porta-voz da cultura da confissão, e o gozo que desperta no leitor é o mesmo induzido pela civilização dos objetos e do consumo.
Os relatos que faz da mesquinhez, do despeito, da inveja, do rancor, dos medos e ressentimentos de que todos somos capazes não soam sequer como maledicência; são apenas pecados leigos de almas descrentes em qualquer redenção. Nenhum escândalo, nenhum golpe no farisaísmo burguês e suas idéias feitas decorrem da frieza com que trata, de modo igualmente apático e distanciado, o que julga vício ou virtude, em si mesmo ou nos que o rodeiam.
Num mundo feito de calhordice, pornografia, ganância econômica, irresponsabilidade política e superficialidade intelectual, uma cartada arrivista aqui, um açoite sexual ali, chocam tanto quanto cenas de horrores na Bósnia, misturadas à propaganda de automóveis e roupas da moda. Quem de nós perde o sono ou recita mea culpa depois de um noticiário de televisão? Isto é pouco, muito pouco, para quem foi tão longe na dor de viver com Aids.
"Para o Amigo que Não Me Salvou a Vida" não é só um livro sobre Aids. É um depoimento sobre a vida e a morte no limite extremo de sua significação. Deve ser lido como quem colhe ouro na ganga bruta. Pode-se ficar com o ouro ou com o que resta. Hervé Guibert merece que guardemos sua memória junto com o que fez de mais belo e elevado.

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