São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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O aprendizado da censura

JOHN E. LOCKE
DA NEW SCIENTIST

A maior parte das crianças começa a formar frases entre os 18 meses e os dois anos de idade. Quando não o fazem e são levadas a uma clínica especializada, geralmente se descobre que o problema não é de formação de frases. Diz respeito à habilidade mais primária de pronunciar palavras.
Esta é apenas uma entre várias observações que me levaram a repensar minhas concepções sobre a relação entre linguagem e fala. (Por "linguagem", entendo nossa aptidão para gramática, sintaxe, vocabulário e assim por diante e por "fala", a habilidade de expressar oralmente pensamentos codificados em linguagem.)
O quadro, até aqui, é mais ou menos o seguinte. Usamos os códigos e as normas da linguagem para representar pensamentos; usamos nossa capacidade de falar para comunicar essas representações.
Segundo essa visão, a fala não é mais que um processo mecânico, um "porta-voz" que nos permite externar a linguagem que está em nossas cabeças.
Mas creio que essa noção está errada: a fala é muito mais que um simples porta-voz da linguagem.
Algumas descobertas, minhas e de outros laboratórios de pesquisa, assim como a observação de pessoas no ato de falar, demonstram que não utilizamos nossa capacidade de falar apenas como meio de comunicar aos outros nossos pensamentos fundados na linguagem.
Bebês tagarelam por outras razões. O conteúdo linguístico da fala dos adultos com frequência é irrelevante; em um bate-papo, por exemplo, nossa fala se transforma em uma série de gestos vocais semelhantes aos utilizados na linguagem corporal.
E estudos neurológicos mostram que "saber falar" não é o mesmo que "saber a linguagem". No cérebro humano talvez exista um "mecanismo falante" bastante distinto dos centros que regem a gramática, a compreensão e a linguagem.
Mas, se a fala não é um mero porta-voz da linguagem, para que mais serve então?
Numa cultura em que as palavras "linguagem" e "fala" são empregadas quase que alternativamente (e talvez erradamente), a questão pode parecer difícil de entender, quanto mais de responder.
Ainda assim é importante tentar fazê-lo, porque as outras e menos evidentes funções da fala podem guardar pistas valiosas sobre alguns mistérios perenes e muito discutidos, tais como por que a maioria das crianças desenvolve a linguagem facilmente (e por que algumas não).
Na realidade, quando deixamos de entender a fala como indissoluvelmente ligada aos pensamentos fundados na linguagem e começamos a vê-la como um canal autônomo para a comunicação social e o desenvolvimento pessoal (ainda que frequentemente posto a serviço da linguagem), também muda nossa perspectiva sobre a linguagem.
Em lugar de entender a aptidão para a linguagem como o motor que dirige a fala, fica mais fácil ver nossa aptidão para a fala como a força motriz.
Também é mais fácil imaginar a linguagem evoluindo em resposta à fala, como um sistema destinado a policiar o que seria, de outro modo, uma emissão desordenada de sons e balbucios.
Ocorre que parte de nossa fala não é nem comunicativa nem particularmente social. Na realidade, até mesmo pessoas normais, saudáveis, podem ser flagradas falando sozinhas.
As expressões vocais dirigidas a animais de estimação e plantas domésticas, e os sons ou fala emitidos em reação a dor, ferimentos ou contrariedades são formas comuns de falar sozinho.
Assim como as tentativas de recuperar a compostura depois de um acidente, a reação a notícias traumáticas ou a frustração, repulsa, alegria intensa ou excitação sexual. Esses exemplos - e o uso subvocal da fala para contar, decorar números de telefone e coisas do gênero -sugerem que a fala não é inerentemente social.
Vamos analisar as bases do desenvolvimento da fala e questionar a sociabilidade dos comportamentos iniciais que nos remetem a ela. Pesquisas de Kim Oller e seus colegas da Universidade de Miami, Flórida, indicam que a maioria das crianças começa a tagarelar por volta dos sete ou oito meses de idade.
Como o tagarelar envolve o abrir e fechar ritmado da boca enquanto ocorre a vocalização, produz formas silábicas que lembram sílabas de fala real (os familiares "papapa" e "mamama"), às quais os pais tipicamente se referem como "fala". Ao se desenvolver, tais expressões vocais vão se mesclando imperceptivelmente à fala, e é difícil diferenciá-las de palavras de verdade.
A disposição das crianças para tagarelar é tão poderosa que nem o retardamento mental, danos cerebrais e deformidades estruturais do mecanismo da fala -como a ausência da língua- costumam impedi-las de fazê-lo.
Surpreendentemente, até os bebês que nascem surdos passam pelos estágios normais do desenvolvimento vocal primário e, com ligeiro atraso, iniciam as expressões vocais, produzindo desse modo as sílabas e sons contidos na fala.
Que os bebês surdos consigam vocalizar e, mais ainda, produzir sons complexos que não conseguem ouvir, é um dos grandes mistérios não esclarecidos pela linguística do desenvolvimento.
A vocalização dos bebês não é inerentemente social. Eles tendem a vocalizar sozinhos ou acompanhados. Como a fala, esse tagarelar parece ser uma agradável brincadeira para bebês que estão relaxados, felizes, descansados e aparentemente de bom humor.
Assim como adultos deprimidos podem não ter vontade de falar, bebês infelizes ou doentes provavelmente tagarelam menos que os que estão felizes. E, quando aprendem palavras, as crianças não parecem sentir qualquer embaraço em falar sozinhas. Fazem-no quando estão às voltas com seus brinquedos, e conversam longamente com bonecas e companheiros imaginários.
Tudo isso logicamente sugere que a fala é independente da linguagem. Mas não quer dizer que a vocalização e a fala não exerçam efeito sobre o desenvolvimento da linguagem.
"Buu"
Anos atrás, a linguista Carol Stoel-Gammon, da Universidade de Washington, relatou que crianças atrasadas no desenvolvimento da linguagem não tinham vocalizado da maneira típica ou fizeram-no com menos frequência do que os bebês que haviam adquirido a linguagem no tempo normal.
Quando os bebês começam a produzir sons típicos da fala, a resposta dos pais pode ser importante. Estes tendem a tratar simples balbucios como conversas de verdade, e respondem de acordo. Em resposta ao "papapa, a mãe diz: "Papai"? Quando a criança diz "buu, os pais olham em torno em busca de um objeto que corresponda ao "tema do bebê". Isso lhes permite dizer: "Ah, é, bola, aquela é a bola, né?"
Muitas variações vocais -por exemplo, mudanças de tom, ritmo e tonicidade- podem ajudar os bebês a descobrir palavras e orações. Provas recentes foram obtidas por Peter Jusczyk, da Universidade Estadual de Nova York, e Kathy Hirsh-Pasek, da Universidade de Delaware. Seus estudos mostram que bebês criados em língua inglesa prestam mais atenção às expressões que têm pausa no fim, comparadas às que têm pausa no meio, assim como atentam mais aos dissílabos ingleses em que a tonicidade é a tradicional, do tipo forte-fraca, como "neighbour" ("vizinho", que se pronuncia "nei-bãr", com tônica no "nei"), em comparação com os dissílabos de tonicidade fraca-forte, menos comum, como "comply "("com-plái", "obedecer", com tônica em "plái").
"El camino real"
Esse interesse em variações vocais não desaparece com a aquisição de sofisticação linguística. Warren Fay, especialista em patologias da fala na Escola de Medicina da Universidade de Oregon, em Portland, pronunciou uma expressão irreconhecível para um grupo de crianças de três anos de idade que tinham o inglês norte-americano como língua única.
Quando, a seguir, pronunciou a expressão "el camino real, 24% das crianças responderam positivamente. Mas, quando perguntou "el camino real?, com a entonação ascendente associada a perguntas no inglês norte-americano, as respostas positivas subiram para 62%. As crianças aparentemente atribuíram sentido às expressões vocais de Fay, mesmo que elas não fizessem sentido algum.
Expressões mais óbvias de nossa capacidade de responder à fala são os jogos de palavras. A fala é uma característica altamente desenvolvida de nossa espécie e indivíduos de todas as idades divertem-se com ela por si mesma, a despeito de seu valor funcional na comunicação do pensamento.
Todos os anos os turistas lotam uma cidadezinha sem maiores encantos no norte do País de Gales por uma única razão - seu nome: Lianfairpwllgwyngyligogerychwyrndrobwlillantysiliogogogoch!
Os passos da criança rumo à linguagem oral são estimulado por um desejo de falar como as pessoas com as quais ela tem vínculos emocionais. Se as crianças simplesmente buscassem falar de maneira inteligível, poderiam perfeitamente descontinuar o processo de aprendizado quando adquirissem linguagem suficiente para satisfazer seus propósitos. E seria compreensível que diminuíssem seus esforços para falar de modo inteligível quando descobrissem que nós entendemos sua articulação imatura tal como ela é.
Mas elas seguem em frente, absorvendo os maneirismos de conversação de seus pais junto com os sons, palavras e marcos gramaticais linguisticamente fundamentais. O que sugere, por si, que as crianças não aprendem palavras só para expressar sentido, mas também para imitar os adultos.
À medida que se aproximam da adolescência, as crianças são instruídas a não falar se não estão se dirigindo a alguém. Mas alguns indivíduos maduros involuntariamente violam a proibição de falar sozinhos. Pessoas esquizofrênicas, dementes, confusas ou solitárias podem "falar consigo mesmas ou (talvez mais precisamente, em alguns casos) falar para ninguém.
Macacos silenciosos
A maioria de nós acha que quem faz isso "perdeu o controle" - e é esse, precisamente, o meu argumento. Falar é tão natural que precisamos de mecanismos que inibam essa atividade quando estamos sozinhos. Nos anos 50, quando experiências de privação sensorial estavam na moda, descobriu-se que indivíduos perfeitamente normais e saudáveis podem cantar para si ou falar sozinhos mesmo na ausência da experiência ambiental usual.
Conversar, para a maioria de nós, é virtualmente o único meio de que dispomos para mostrar aos outros quem somos (por "conversa" entendo aqui não só a fala, mas também a linguagem corporal e as expressões faciais).
Para demonstrar nossa seriedade, afabilidade, sinceridade e senso de humor, precisamos falar. Mas em muitos casos o que importa não é o que dizemos, mas como o dizemos e qual nossa aparência. Em mexericos e bate-papos, o sentido transmitido por nossa linguagem verbal é geralmente subordinado à assim chamada linguagem corporal -e frequentemente subordinado ao próprio fato de que estamos fazendo um esforço para vocalizar.
Como observou Robin Dunbar, psicólogo da Universidade de Liverpool, em muitas circunstâncias falamos para mais interagir do que para informar. Dunbar chega a relacionar essa forma de conversa à atividade de "catação" entre primatas não-humanos.
Essa analogia sugere que primatas não-humanos "catam" em lugar de vocalizar - e este, de fato, parece ser o caso. Embora os primatas emitam gritos característicos em brigas, aparentemente não vocalizam em situações de baixo desafio biológico -nesse caso, chilreiam e sussurram.
Em 1989, Allen Gardner e seus colaboradores da Universidade de Utah notaram que "os chimpanzés" são animais silenciosos a maior parte do tempo. Um grupo de dez chimpanzés selvagens de sexos e idades variadas, alimentando-se calmamente em uma figueira em Gombe, pode fazer tão pouco ruído que é capaz de passar completamente despercebido a um observador inexperiente que esteja passando embaixo.
Além disso, símios parecem não ultrapassar um estágio de desenvolvimento vocal que lembra muito o tagarelar dos bebês. Símios e macacos certamente não realizam atividades importantes vocalmente, mas humanos parecem fazer da vocalização uma atividade.
Peter Sellers
Outras observações sobre a diferença entre fala e linguagem vêm das patologias da fala em que a linguagem permanece intacta. Há muitas desordens do gênero, incluindo o fluxo excessivo de fala, a síndrome de Tourette, e a completa cessação da fala.
Em 1962, em Harvard, Eric Lennemberg descreveu o caso de um adolescente gravemente debilitado e incapaz de formar os sons da fala. Apesar disso, o garoto tinha um nível de compreensão normal da linguagem.
Inversamente, há pessoas que podem falar bem, mas conhecer menos linguagem que o normal. Há muitos anos surgiram informações sobre uma doença até então desconhecida denominada síndrome de Williams.
Os doentes tinham intelecto reduzido mas um estilo de fala bastante coloquial, bem parecido com o de Chancy Gardner, o adorável pateta interpretado por Peter Sellers em "Muito Além do Jardim".
Na afasia, um derrame ou outro acidente cerebral impede que as pessoas recordem as palavras e o conhecimento gramatical que armazenaram. Em alguns pacientes, no entanto, as desordens podem não ser facilmente detectadas, porque eles retêm controle sobre as formas não criativas de linguagem e continuam a utilizar palavras e expressões profundamente gravadas, tais como "bem, é claro, você sabe", e frases como "se não pode vencê-los, junte-se a eles".
Casos do gênero chamam nossa atenção para a falta de criatividade associada a muitas conversas normais. Algumas vítimas de derrame têm um tipo particular de debilidade chamada "afasia de jargão". Tais pacientes entendem pouca ou nenhuma linguagem, mas falam fluentemente, em geral com a emoção, entonação e expressão facial de uma conversa normal. Para todos os efeitos, não têm qualquer linguagem, mas sua capacidade de falar permanece intacta.
Essas descobertas sugerem que os humanos têm no cérebro um mecanismo específico que existe apenas para o controle da vocalização e da fala, separado de outros mecanismos necessários para a linguagem gramatical ou para a solução de tarefas complexas. Tais mecanismos de fala funcionam com muito pouco estímulo do meio ambiente em que vivam os bebês.
O que se pode dizer, então, do sistema de normas gramaticais das quais a linguagem deriva sua flexibilidade criativa? As operações cognitivas associadas à gramática parecem começar como estratégias eficazes que ajudam os bebês a lidar com vocabulário e pensamento em rápida expansão. Isso porque a linguagem, em primeira instância, é inerentemente organizacional - uma habilidade mental para ordenar o caos léxico -, um modo de lidar com todas as expressões vocais que estão competindo por espaço no vocabulário expressivo do bebê. Mas isso seria desnecessário na ausência de pressões exercidas pela atividade que acabamos por conhecer, simplesmente, como a fala.

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