São Paulo, domingo, 09 de abril de 1995
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Biografia revela segredos do papa

TAD SZULC

No dia 28 de setembro de 1978 o arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla, celebrou o 20º. aniversário de sua consagração como bispo. No Vaticano, o papa João Paulo 1º. morreu naquele mesmo dia.
Sua morte foi anunciada logo cedo na manhã seguinte e foi Józef Mucha, o motorista do cardeal, quem ouviu a notícia no rádio do carro e correu ao palácio da Cúria para informar o padre Obtulowicz, o vigário. Obtulowicz recorda que Wojtyla estava tomando o café da manhã quando a notícia da morte de João Paulo 1º. lhe foi trazida. Ele ficou sentado em silêncio por um momento, depois disse: "Deus opera por caminhos misteriosos... Inclinemos nossas cabeças diante deles..."
Mas ele continuou com seu próprio trabalho. Ainda naquela manhã, participou de uma reunião no Conselho do Departamento Teológico, depois partiu de carro para Zlote Lany por dois dias, para fazer uma inspeção de uma nova paróquia naquele local. Retornando a Cracóvia no dia 30 de setembro, Wojtyla pediu ao motorista que parasse na beirada do bosque perto do santuário de Kalwaria Zebrzydowska.
Ele ficou sentado no carro por algum tempo, escrevendo cartas em sua mesinha de colo, depois mandou Mucha levá-lo para casa. No palácio, mandou um assistente fazer com que as cartas fossem datilografadas. Como observou o assistente mais tarde, "foi como se ele quisesse concluir todos os seus assuntos aqui, não deixando nada por fazer".
No dia 2 de outubro Wojtyla viajou a Varsóvia para uma reunião do Concílio Geral do episcopado polonês. Estava calmo e sem pressa.
Às 7h30 do dia 3 de outubro de 1978, Karol Wojtyla e o primaz Wyszynski voaram para Roma.
(...)
Se Karol Wojtyla tinha alguma premonição sobre seu próprio futuro quando retornou a Roma no início de outubro para o segundo conclave de 1978, no decorrer das duas semanas seguintes ele se comportou de maneira notavelmente normal, como apenas um cardeal como outro qualquer, preparando-se para eleger um novo pontífice.
E se uma candidatura Wojtyla estava começando a emergir nas conversações reservadas realizadas em Roma durante esse interregno, o cardeal de Cracóvia não tinha qualquer participação visível nela. Com ou sem seu conhecimento, o assunto estava nas mãos de seus amigos e potenciais defensores. Embora o Espírito Santo possa inspirar os cardeais em sua escolha, como diz a Igreja, as eleições papais sempre foram um exercício de política delicadíssimo. O conclave de outubro e os dias que o antecederam não constituíram exceção.
Wojtyla passou boa parte do tempo com seu velho amigo, o bispo Deskur, um prelado poderoso com inclinações políticas, ótimas conexões e jogador de bridge, e com outro amigo, o bispo Rubin, secretário-geral do Sínodo dos Bispos. Ambos eram muitíssimo bem informados sobre a política e as intrigas anteriores ao conclave, quer os tenham discutido com Wojtyla ou não. É difícil imaginar que Wojtyla não tivesse interesse nas fofocas relativas ao conclave - afinal ele também era político nato e eleitor do papa.
Na semana anterior ao conclave Wojtyla intensificou suas atividades sociais e políticas. Deskur promoveu encontros para ele com o cardeal italiano Nasalli Rocca e com o arcebispo Luigi Poggi, um alto diplomata do Vaticano com experiência na Polônia, e com o cardeal John Cody, de Chicago, cujos paroquianos incluíam um grande número de americanos de origem polonesa. Wojtyla já conhecia bem o cardeal Krol, da Filadélfia, ele próprio americano de origem polonesa, mas percebia a importância de ampliar seus contatos no importante contingente norte-americano. O período do pré-conclave foi se tornando cada vez mais parecido com uma convenção política secular e Wojtyla atraía cada vez mais atenção entre seus pares. Seu nome era mencionado a toda hora em meio às manobras realizadas pelos cardeais.
Naturalmente, Wojtyla não dizia nada sobre sua possível candidatura - humildade e modéstia públicas são exigências do conclave - mas Deskur está convencido de que ele já sabia que estava destinado a ser eleito. Ele recorda que durante um passeio pelos jardins do Vaticano, poucos dias antes do início do conclave, "estava muito claro para mim que em algum lugar de sua mente, sua alma e seu coração, Wojtyla sabia que seria papa".
Os 111 cardeais reunidos em Roma para escolher o novo pontífice se confrontavam com duas perguntas principais. Uma delas era se havia um candidato italiano viável e aceitável para manter a tradição de papas italianos, o que não era de maneira alguma certo, e a outra era se a Igreja estava pronta a nomear um papa não-italiano pela primeira vez em 456 anos (Adriano 6º., um holandês de Utrecht, havia sido eleito em 1522, reinando por pouco mais de um ano). Era a primeira vez em quatro séculos e meio que tal possibilidade ao menos se colocava e os italianos temiam que o passo seguinte talvez fosse decidir quem seria esse papa não-italiano - tarefa capaz de intimidar qualquer um.
Mas os próprios italianos haviam criado uma situação que ameaçava impor outro papa estrangeiro à Santa Sé quando o cardeal Giuseppe Siri, de Gênova, e o cardeal Giovanni Benelli, de Florença, haviam emergido desde o início como os dois principais candidatos rivais. O confronto entre eles levou o conclave a um impasse antes mesmo de começar.
Siri, de 72 anos, havia sido protegido de Pio 12 e era identificado com a ala mais conservadora da Igreja, o grupo que acreditava que as reformas do Concílio Vaticano 2º. haviam sido um engano terrível. Benelli, 57, havia sido um dos cardeais mais próximos a Paulo 6º., em seu caráter de "sostituto" - vice-secretário de Estado - e, de modo geral, representava as posições progressistas pós-conciliares. O futuro da Igreja parecia estar em jogo na rivalidade entre os dois. E não havia meio-termo possível entre eles.
Mas dois cardeais de importância crucial já cogitavam de um papa não-italiano, e pensavam especificamente em Karol Wotyla.
Eles eram seus velhos amigos cardeal König, de Viena, e o cardeal Krol, da Filadélfia, ambos filhos de poloneses (por acaso ambos os nomes significam "rei"). Embora divergissem em matéria de orientação política -König era "progressista" e Krol "conservador"-, ambos concordavam que Karol Wojtyla era o homem apropriado para o momento. König acreditava que chegara o momento na história em que a Igreja só poderia ser salva por um europeu "oriental", porque a civilização ocidental estava em decadência - visão que compartilhava com Wojtyla -, enquanto Krol estava extremamente impressionado com a energia juvenil e a profunda espiritualidade do polonês.
Na manhã de sexta-feira, 13 de outubro, os cardeais se congregaram no Vaticano para a seleção das celas que cada um iria ocupar no Palácio Apostólico, ao lado da Capela Sistina, pelo tempo que durasse o conclave. Segundo a lei canônica, os cardeais precisam manter-se isolados dentro de uma área fechada até elegerem o papa. Eles não podem manter contato com o mundo externo - até as janelas externas de suas celas são fechadas com pregos - e só podem falar uns com os outros. Wojtyla recebeu a cela nº. 91.
Na tarde do sábado, 14 de outubro, os cardeais saíram da capela após cantarem o "Veni Creator" (hino de invocação do Espírito Santo). Eles retornaram no domingo para concelebrar a missa às 7h e deram início ao primeiro dia de suas deliberações. Sentados em duas fileiras sobre plataformas elevadas em cada lado da capela, os cardeais estavam frente a frente. O altar e o "Julgamento Final" estavam a seu lado. Cada cardeal tinha uma escrivaninha à sua frente. Em cima de cada uma, um lápis e um bloco de anotações. Eles deveriam escrever o sobrenome do candidato de sua escolha numa tira de papel, dobrá-la cuidadosamente, depois de checar a ortografia, e depois colocá-la numa urna.
Os votos são sempre entregues sem serem assinados, para proteger seu sigilo. Os votos são lidos em voz alta, um a um, por três cardeais que fazem a contagem, supervisionados por três cardeais que funcionam como observadores da eleição. Os votos são falados em voz alta para que os cardeais possam anotá-los e ter uma idéia imediata de quem está liderando (ou não) a votação.
Mas no final do primeiro dia, 15 de outubro, ninguém estava em posição de vantagem clara, para obter a maioria necessária de dois terços mais um voto para poder ser eleito. Após as quatro eleições do domingo -duas na parte da manhã e duas na parte da tarde-, o conclave se viu num impasse entre Siri e Benelli, nenhum dos quais sequer chegava perto de obter o mínimo necessário de 75 votos, entre os 111 cardeais.
Entre a noite do domingo e a segunda-feira, mais e mais cardeais começaram a perceber que nenhum candidato italiano tinha chances de se eleger e que eles não teriam outra opção senão escolher um estrangeiro. König, Krol, o belga Leo Jozef Suenens, o espanhol Vicente Enrique y Tarancón e o brasileiro Aloísio Lorscheider tomaram a si a tarefa de convencer seus colegas cardeais desta realidade durante o jantar e em rodinhas formadas nas celas e nos corredores do Palácio Apostólico.
Na segunda-feira, 16 de outubro, a primeira ordem do dia (após a missa matinal) foi para os não-italianos convencerem o Colégio Cardinalício que chegara a hora de escolher um papa estrangeiro. E os defensores de Wojtyla, agora em números crescentes, tiveram que deixar claro -com delicadeza- que ele era o homem indicado.
O cardeal König levantou-se na sessão plenária matinal para apresentar sua posição básica diante de seus colegas eleitores. É assim que se recorda da ocasião: "Recordo que antes do conclave anterior eu recebera várias cartas de pessoas desconhecidas na Itália, dizendo "por favor, votem num não-italiano porque nosso país está numa confusão tão grande, e nos ajudaria se o novo papa fosse um não-italiano'. Um argumento muito curioso. Assim, no início, na minha opinião, a razão (da oposição a Wojtyla) foi que ele era jovem e muito mais do que isso, um não-italiano originário de um país do Leste Europeu".
König continuaria a reforçar que embora muitos cardeais se dessem conta de que seria desejável escolher um papa mais jovem, Wojtyla, que na época tinha apenas 58 anos, parecia a muitos ser jovem demais. Esta visão era compartilhada pelo primaz da Polônia, Stefan Wyszynski, que, aos 77 anos, deixou alguns de seus amigos constrangidos ao sugerir, durante as conversas mantidas no domingo à noite na Capela Sistina, que ele próprio seria o pontífice estrangeiro "natural", se a discussão chegasse a esse ponto. Na realidade o primaz, que sempre tivera sentimentos muito conflitantes em relação a Wojtyla, acreditava, surpreendentemente, que o próximo papa deveria ser italiano. Seu biógrafo conta que Wyszynski "achava que a tradição seria respeitada na eleição de outro papa italiano... Ademais, ele via tal resultado como apropriado: não apenas pensava que os romanos deveriam ter um bispo italiano, como temia as consequências de se romper com uma tradição de 455 anos".
Era esta a resistência que König e seus aliados precisavam superar, portanto. E, como König recorda aquela sessão da segunda-feira de manhã, "Eu defendi minha opinião abertamente diante do conclave. Eu disse que 'está na hora de mudar o sistema e votar num não-italiano. Essa é minha opinião' ".
(continua)

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trechos da biografia do papa às págs. 23 e 24

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