São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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A arquitetura do Estado ótimo

MÁRIO COVAS

A tática da "terra arrasada" sempre foi utilizada para deter exércitos inimigos: a par do despovoamento, destruiam-se colheitas, reservas e rebanhos. Pagava-se o custo da resistência com sofrimentos inauditos impostos aos habitantes da terra. Duvido que os dois governadores que me antecederam tenham adotado deliberadamente tal tática. Mas os efeitos práticos de sua gestão em muito se assemelham a isso.
Na tarde de meu primeiro dia como governador, o secretário da Segurança Pública veio a mim com a seguinte urgência: a Petrobrás não mais iria fornecer combustível à polícia. Começamos então a apagar incêndios. Nas contas bancárias do Estado só havia R$ 36 mil... Às vésperas da posse, fui surpreendido com o aviso do Banco Central de que iria intervir no Banespa, a quem o Estado de São Paulo deve US$ 11 bilhões. Em 1992, esta dívida era de US$ 3 bilhões. Mas, em negociação com o Banco Central, o Estado deixou de pagar os juros e a dívida saltou de US$ 3 bilhões para US$ 11 bilhões!
O curto-circuito das cifras, até então maquiadas, ocorreu de forma avassaladora, ultrapassando de longe os dados de que se dispunha durante a campanha: um estoque da dívida de US$ 49 bilhões -algo que beira metade da dívida externa brasileira. Mais ainda: independentemente desse estoque, e de forma perversa, as despesas de custeio executadas em 1994, somadas às despesas de desapropriações não pagas e também vencidas, totalizaram R$ 1,5 bilhão. As dívidas com as empreiteiras chegaram a R$ 2,5 bilhões, deixando 500 obras paradas.
Ora, nos primeiros três meses de governo, nossos gastos com o custeio da máquina pública, expurgada a folha de pagamento, foram de apenas R$ 66 milhões mensais. Como foi possível atrasar R$ 1,5 bilhão? E mais: as dívidas com as empreiteiras não o são com as "grandes irmãs" que faturam bilhões, mas com empresas médias que construíram escolas, conjuntos habitacionais, pequenas obras nos municípios, e com pequenas empresas de projetos. Toda a arrecadação do ICMS, que representa cerca de 90% da receita estadual, mal ultrapassa R$ 1 bilhão por mês. Assim, apenas para saldar nossos atrasados, teríamos de deixar de pagar o funcionalismo e de paralisar o Estado durante quatro meses!
Se alguém vislumbrasse tal mágica, o dia 6 de janeiro iria acordá-lo: era preciso pagar o pessoal, com montante de cerca de R$ 700 milhões! Ora, com que dinheiro, se só havia R$ 36 mil em caixa no dia 1º, o equivalente a dois automóveis Monza? Com a arrecadação da primeira semana, conseguimos pagar R$ 350,00 a cada funcionário, parcelando, pela primeira vez em muitos anos, o salário do funcionalismo.
O descalabro também se estendia às empresas estatais. A Eletropaulo, por exemplo -empresa que já foi laureada pela revista "Exame" como empresa do ano-, perdeu US$ 750 milhões, anualmente, no último triênio (o maior prejuízo sofrido por uma empresa brasileira nos últimos anos!). E como isso foi possível, se ela comprava a energia a US$ 32 o quilowatt e o revendia a US$ 58? Esse negócio fantástico fora convertido numa façanha às avessas... Operando numa área restrita, detendo um monopólio, dispondo de um corpo técnico competente, a empresa afundara por problemas de gestão em que se aliou a irresponsabilidade administrativa à visão corsária.
Trata-se de uma situação emblemática, sem dúvida. Mas o padrão vale para boa parte das estatais e para a administração direta. Como explicar, por exemplo, a compra de 180 mil medidores pela Comgás, quando a expansão anual de usuários limita-se a 4.000? Como explicar que São Paulo tenha mais de R$ 10 bilhões a receber em dívidas fiscais e não tenha ido à Justiça com uma única ação contra sonegadores de tributos desde abril de 1994? Como explicar que o Estado tenha permanecido todo o ano passado sem pagar suas dívidas judiciais previstas na lei orçamentária e que somam R$ 250 milhões?
Nessas condições, fomos levados a demitir 24 mil funcionários de estatais. Reduzimos também o custeio ao mínimo sustentável, comprimimos os contratos de terceiros, lançamos o primeiro edital de qualificação para a duplicação da rodovia dos Bandeirantes de Campinas a Limeira, contando com recursos privados a serem remunerados com a cobrança do pedágio. E, no mesmo esquema das "concessões onerosas", planejamos a duplicação da rodovia Raposo Tavares, a segunda pista da Imigrantes, as laterais e a extensão da Castello Branco, além de vários trechos da Washington Luís.
No setor energético, estão sendo criadas unidades de negócios na Cesp, Eletropaulo e Companhia Paulista de Força e Luz, para saneá-las e para prepará-las a operar de modo competitivo -primeiro passo para qualquer formato de parceria com a iniciativa privada.
Assim, como homem público, a quem não se autoriza dar as costas à realidade das ruas, entendo que o saneamento das finanças assume o caráter de imperativo principal, a curto e médio prazo. Ainda que tal orientação zere por um bom tempo a capacidade governamental de investir. Se assim não fosse, aliás, o Estado ficaria incapacitado para desempenhar suas funções precípuas, entre as quais a de contribuir para minorar os consideráveis desníveis sociais. As soluções, por isso mesmo, não podem ser convencionais, nem podem descartar decisões cirúrgicas. Porque chegamos a um ponto de não-retorno.
Ao invés do Estado onipotente, que conta apenas com suas próprias forças e recursos, sobra-nos a lucidez das experiências recentes do mundo dos negócios: elaborar e implementar estratégias associativas ou relacionais. Não só na construção de espaços econômicos comuns (como o Mercosul), não só em termos intra e intergovernamentais, mas também, e principalmente, com os setores privados, os fundos de pensão, as associações voluntárias. Pois aumentar receitas pelo combate à sonegação e diminuir despesas com coragem -apesar dos alaridos e das resistências veladas- não bastam mais. Devemos ir à jusante dos truísmos, quando estes fazem sentido, e à montante dos interesses cristalizados, quando estes caducam diante da nova dinâmica social.
É preciso dar saltos qualitativos, pois. Saber inovar e ousar fazer. Aposentar paradigmas superados e dogmas insustentáveis. Reconhecer que não mais cabe ao Estado desempenhar o papel de centro de gravidade e de grande investidor. Nem que se quisesse a coisa seria exequível: uma inviabilidade prática condena o modelo.
Quais papéis então ficariam reservados ao Estado? O de indutor e de regulador do mercado, o de orientador e de provedor de bens e serviços públicos. Ou seja: não há mais lugar para o formato do Estado tutor e demiurgo dos populistas, nem para o Estado máximo dos totalitários, nem para o Estado mínimo dos neoliberais; mas há lugar, isso sim, para o Estado ótimo, socialmente necessário, da social-democracia contemporânea -uma concepção que proporciona a superação dos assistencialismos paternalistas e do fiscalismo asfixiante.
Tais constatações nos remetem à necessidade inelutável de repensar o Estado como um todo. Redesenhá-lo. À semelhança do que fizeram as empresas privadas, num doloroso mas eficaz processo de reengenharia. As burocracias verticalistas e centralizadoras, detentoras de monopólios, estão definitivamente condenadas à extinção neste mundo competitivo e globalizado. A era digital não perdoa administrações voltadas para o próprio umbigo, inchadas, ineficientes e perdulárias. Exige uma orientação para os clientes, os usuários, o mercado consumidor.
Para tanto, impõe-se adquirir flexibilidade, versatilidade, polivalência; aprender a delegar, a compartilhar, a descentralizar; exercitar o bom senso e arquivar os velhos princípios do parcelamento e da repetição tarefeira do modelo fordista; desenvolver, com as tecnologias da informação, a capacidade multifuncional de operar processos.
Vê-se então que, tal como está, o Estado de São Paulo é ingovernável: tem um milhão e 137 mil funcionários ativos e inativos, centenas de repartições públicas, dezenas e dezenas de empresas estatais, autarquias, institutos e fundações. E essas organizações todas foram concebidas de forma piramidal, presas a um labirinto de normas, habitadas por funcionários, senão estáveis, pelo menos inamovíveis pelas tradições ou por acordos sindicais.
Não se estranha, então, a dificuldade com que o Estado se defronta nas atuais negociações com o funcionalismo: há um grande desnível salarial, sem dúvida, e a imensa maioria recebe quantias irrisórias. A atual administração se desdobra para oferecer reajustes acima do IPC-r, e mesmo assim as propostas têm tido um trânsito penoso.
As parcerias com o setor privado e o chamado terceiro setor das organizações voluntárias podem nos abrir novos horizontes e permitir-nos reformular as operações do Estado. Essa nova arquitetura repousará nos formatos tradicionais das contratações, permissões e autorizações, mas também nos formatos modernos das múltiplas associações que ensejam as concessões, as privatizações de vários tipos, as terceirizações, as quarteirizações, as desregulamentações, as franquias, as operações interligadas, as empresas paraestatais sem fins lucrativos, os empreendimentos comunitários, as co-produções, as permutas entre propriedades públicas e equipamentos sociais.
Trata-se, portanto, de operar uma aliança estratégica em que a cooperação e a imaginação formarão um par criativo. Trata-se de adotar uma postura que se amolda às determinações do momento atual e que deriva da compreensão pragmática que, sem a contribuição da cidadania organizada, a "res publica" pode vir a correr riscos.
Aliás, já em 1968 escrevia Peter Drucker, com a sabedoria de quem sabe apanhar tendências no ar e prognosticar desdobramentos: "...enfrentamos a escolha entre o governo extenso e impotente, e o governo que é forte porque se limita a decidir e a dirigir, deixando o 'fazer' para outrem. Precisamos de um governo que pode e deve governar. Isto é, não um governo que 'faz', mas sim um governo que governa".
Afinal, num país latino-americano, tão marcado pela desigualdade social, parece-me que restam ao Estado as funções de coibir as disfunções do mercado, sim, mas também as de promover políticas sociais compensatórias. Com qual intuito? O de garantir às massas deserdadas o acesso aos direitos sociais e a satisfação de suas necessidades básicas. Eis o porquê do Estado.

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