São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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Cientistas com a macaca

MARIO VITOR SANTOS<PW:POPUP,2,0.5>EDUARDO<UN->

Mario Vitor Santos
Quando o caso de David Carr, inglês morto em 1959, conhecido como o paciente zero de Aids no mundo, veio à tona em 1990, ele se tornou celebridade instantânea. O aprendiz de tipógrafo, morto de estranha doença não identificada na época, teria sido o responsável pela disseminação do vírus no mundo, que percorreu como membro da armada britânica. Ah, esses marinheiros... Enquanto batalhava incansável e inutilmente pela preservação dos escombros do império contra as hordas de bárbaros, Carr disseminava em segredo o vírus pelas colônias sublevadas. Ah, esses incansáveis imperialistas... Agora, pesquisadores de uma universidade de Nova York descobriram que Carr, na verdade, não morreu em consequência da Aids. Pode ter havido uma fraude por parte dos pesquisadores que, em 1990, anunciaram ter descoberto a doença que matou o homem de Manchester. Ah, esses cientistas fraudadores... Nos tempos da Guerra Fria, Moscou também teve a sua hipótese para a Aids. A KGB dizia que o vírus teria sido produzido num laboratório de pesquisas de guerra bacteriológica da Cia em Fort Detrick, Maryland. Mais tarde, na era Gorbatchov, a Academia Soviética de Ciências negou a veracidade das acusações. Ah, esses comunistas... Agora, sem a hipótese ligada ao caso de David Carr, estão eliminados todos os empecilhos à vertente africana. Diz ela que o HIV contaminou um ser humano pela primeira vez através de relações sexuais entre um negro africano (uma negra?) com símios, os nossos (ou deles?) primos macacos. Ah, essa macacada... A hipótese logo suscita a imagem de um negro fornicando com uma macaca (um macaco?) na floresta, sobre um galho. No momento talvez haja outros macacos e negros em volta, promíscuos que são, tagarelando ruidosamente, batendo palmas, esperando a vez. Ah, essa ginga africana... Inocentes, nós ficamos sem saber que naquele momento da mistura dos líquidos estava surgindo a praga do fim do milênio, o fato científico de maiores repercussões desde a invenção da bomba atômica. Macacos são portadores de SIV (vírus da imunodeficiência símia), que no sangue humano teria se transmudado em HIV. Do chamado "continente negro" (de homens e macacos, negros), a Aids transferiu-se ao Haiti. Porta de entrada perfeita nessa história, a perigosa franquia africana no Caribe é uma ilha assombrada pelo vodu e cerimônias em que o corpo de bonecos que representam os inimigos é espetado com agulhas... Tais espetadelas infligem dor real e morte aos destinatários. Só depois de passar por um mestrado em feitiçaria no Haiti, o vírus foi contrabandeado e chegou afinal às costas dos Estados Unidos. Ah, esses bruxos haitianos... A escritora Susan Sontag apontou a cadeia de significados implícita nessa versão eurocêntrica da gênese da doença: a Aids, que já foi chamada de peste "negra", seria o resultado direto da bestialização do homem, sua equiparação aos animais, fruto da lascívia incontrolável, selvagem. Nada que o caboclo brasileiro não conheça, sem temer, entretanto, desencadear as forças arrasadoras geradas certo dia numa árvore africana. Confirmam-se afinal as concepções de que os negros conformariam mesmo uma raça inferior. Pior que isso, misturar-se a eles representaria perigo concreto para a humanidade -"não, não é preconceito", diriam- porque dessa mistura vem uma ameaça mortal. Ainda de acordo com a visão paranóica, a ameaça da Aids foi trazida, ou levada, pelos imigrantes dos trópicos (nós), provavelmente ilegais, sobre os quais sempre se alertou mas a quem se trata com indiferença condescendente. Cumpre, então, fechar as porteiras externas aos negros de todas as cores. Os alienígenas estariam prestes a assumir o controle através da doença. Pode até haver alguma utilidade terapêutica, além de inocente interesse histórico, na tentativa de se achar a origem geográfica da Aids. Mas parece existir também poderosos estereótipos em ação.
Mario Vitor Santos é editor de revistas da Folha.
Ilustração: escultura africana

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