São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 1995
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Sede de poder

ANTONIO CARLOS SPIS

Passada a falsa euforia do Plano Real, o país está diante de uma grave crise econômico-social que penaliza sobretudo a população mais pobre, vítima de um novo surto de desemprego e da retomada da alta da inflação, ainda que em níveis moderados.
Incapaz de debelar a crise, agravada pelo contexto internacional, o governo aposta em soluções retiradas da cartilha neoliberal, entre as quais pontificam a privatização de amplos setores da economia nacional e o ataque aos direitos trabalhistas e garantias sociais previstos na Constituição.
Essa intenção do governo tem se chocado com a vontade da maioria dos brasileiros -vontade essa que se traduz em atos e manifestações populares em Brasília e em cada local que o presidente Fernando Henrique visita, provocando nervosismo no governo e em setores da mídia e do empresariado. Esse nervosismo só provoca mais atropelos e trapalhadas na equipe governamental, que não faz outra coisa desde que assumiu o governo, no dia 1º de janeiro.
Parece haver uma concorrência entre os membros do primeiro escalão do governo para o título de maior trapalhão. E essa disputa já chegou ao segundo escalão. Na área das empresas estatais, um fortíssimo candidato ao título é, sem dúvida, o presidente da Petrobrás, Joel Mendes Rennó.
Engenheiro da estatal que chegou a ser demitido no governo Collor, Rennó foi guindado por Itamar Franco à presidência da maior empresa nacional por indicação do PFL de Antônio Carlos Magalhães. Acontece que ele gostou do cargo e pretende ficar. Para isso, não mede esforços em bajular o novo governo (como fez com o anterior), mesmo quando isso implica atacar preceitos constitucionais, arrastar na lama o decoro e a honorabilidade do cargo que ocupa ou desafiar o bom senso e a inteligência de seus interlocutores.
O interesse em se manter no cargo explica as declarações do presidente da Petrobrás, no dia 22 de março, no Congresso Nacional (reafirmadas em 29 de março), quando, atendendo com presteza ao "pito" de Fernando Henrique Cardoso, ameaçou de demissão qualquer petroleiro que defenda o monopólio estatal do petróleo ou critique o governo.
De uma só penada, Rennó conseguiu atacar diversos direitos e garantias do cidadão, inscritos nos incisos II, IV, VI, VIII, IX e LXI do artigo 5º da Constituição federal, além de atentar contra a organização do trabalho, crime previsto no artigo 203 do Código Penal. Esses ataques motivaram a FUP (Federação Única dos Petroleiros) a encaminhar à Procuradoria Geral da República uma representação solicitando a instauração de competente inquérito policial.
A FUP está ingressando, ainda, com outra representação na Procuradoria Geral da República contra o presidente da Petrobrás por suas afirmações de que os petroleiros liberados para exercer cargos de direção em entidades sindicais da categoria representariam "a parte improdutiva" da empresa.
Não é a primeira vez, contudo, que Rennó põe a obediência servil a seus chefes (dentro e fora do governo) acima das leis ou dos interesses da empresa que dirige. Basta lembrar a sucessão de acordos firmados com os petroleiros e não cumpridos pela Petrobrás no ano passado. Em algumas negociações reunindo ministros designados por Itamar e entidades sindicais, Rennó saiu antes do final para "não se comprometer". O último acordo, prevendo uma reorganização na tabela salarial dos petroleiros, foi firmado pela alta direção da Petrobrás em novembro, com previsão de cumprimento até 15 de dezembro, e até hoje não saiu do papel.
A capacidade de adaptação do presidente da Petrobrás ao discurso oficial é espantosa. O Joel Mendes Rennó que hoje tão prontamente se presta a defender a abertura do setor petrolífero brasileiro à iniciativa privada -sobretudo multinacional- é o mesmo que em 8 de abril de 1994 enviou ao então relator da revisão constitucional, deputado Nelson Jobim, extensa carta criticando essa abertura e defendendo o monopólio estatal do petróleo.
Na carta a Jobim, Rennó ataca a idéia de desregulamentação do setor e da adoção de política de concessões às empresas petrolíferas multinacionais. Diz ele, entre outras coisas, que "todos sabem que as concessões funcionam como monopólio de quem as ganha. Normalmente não têm volta e o Estado terá dificuldades, se necessário, em reassumir um negócio para o qual estará desmobilizado" e, ainda que "o item b (da proposta de Jobim) transfere, temporal e institucionalmente, a regulação da matéria (política de concessões no setor petróleo), ao propor que lei específica irá fazê-lo. Se o 'lobby' atual for tão forte para conseguir aprovar essa proposta, imagine-se o que não irá fazer para 'regular' o sistema". Hoje, Rennó aplaude uma política de concessões para o setor e defende ardorosamente a emenda do governo, que joga para a legislação ordinária a regulamentação dessas concessões.
A contradição, porém, é apenas aparente. A motivação de Rennó em ambos os posicionamentos é a mesma: um enorme apego ao cargo. Em 94, a posição pessoal do então presidente Itamar era dúbia em relação ao monopólio estatal do petróleo. Rennó tratou de agradá-lo, assim como agora adula o presidente Fernando Henrique. Não seria de se estranhar se, por hipótese, houvesse uma guinada na posição de FHC sobre o tema e Rennó também mudasse de opinião, sem o menor escrúpulo.
A defesa que nós, petroleiros, fazemos do monopólio estatal do petróleo é permanente e duradoura. Nada tem a ver com interesses como os de Rennó. Defendemos o petróleo brasileiro como bem estratégico da nação e esse posicionamento não está sujeito às interferências conjunturais desse ou daquele grupo encastelado no poder.
Não podemos aceitar que a questão do monopólio, antes de tudo um fator de soberania nacional, seja utilizada como moeda de troca nos bastidores. Por isso, defendemos, sim, o monopólio, mas também, como a maioria do povo, queremos mais transparência e maior responsabilidade social na gestão das empresas estatais e em todas as áreas do Estado.
Posturas como as de Rennó mostram como o país vem sendo conduzido pela equipe de FHC, boa parte herdada do governo Itamar Franco. O povo vai ter que reforçar sua presença nas ruas de todas as cidades do país; não apenas para impedir que o governo imponha suas reformas neoliberais, mas também para impedir que pessoas como o atual presidente da Petrobrás continuem à frente das empresas estratégicas do nosso país, um patrimônio que demandou décadas de trabalho e que não pode servir de cabide de empregos e trampolim para apadrinhados dos coronéis da política brasileira.

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