São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 1995
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Ópera "sai do armário" com Harvey Milk

ZECA CAMARGO
EDITOR DA ILUSTRADA

No último dia 4, boa parte da platéia do New York State Theater, no Lincoln Center (Nova York), não se incomodou com o dueto romântico entre um barítono e um tenor logo no final do primeiro ato da estréia da ópera "Harvey Milk" na cidade. Outra parte simplesmente se retirou no primeiro intervalo.
Para um evento que tinha pelo menos dois motivos para causar chiliques nos amantes tradicionais de ópera (primeiro pelo fato de ser uma composição inédita e segundo por sua temática abertamente gay), "Harvey Milk" chegou decentemente ao final de seus longuíssimos três atos da première nova-iorquina (a New York City Opera fará mais uma performance na próxima segunda-feira).
Quanto ao seu primeiro ponto fraco, a ópera é bem frágil musicalmente. No entanto, a curiosidade despertada pelo tema consegue superar o desinteresse provocado pela música. Sobra, no mínimo, a curiosidade de ver como os autores (Stewart Wallace, música, e Michael Korie, libreto) contaram a densa história de um dos primeiros líderes políticos do movimento gay nos Estados Unidos.
Harvey Milk foi uma figura muito importante para o processo de "saída do armário" (uma maneira de dizer que alguém está assumindo seu homossexualismo) da comunidade gay norte-americana.
Homem de negócios em Wall Street nos anos 60, Milk vivia sua homossexualidade dentro de casa e festas bem fechadas, até conhecer Scott Smith, um hippie gay assumido. Apaixonado, Milk desiste dos negócios e vai para San Francisco (Califórnia) cuidar de uma loja de equipamentos para fotografia, na então famosa Castro Street.
Envolvido pela atmosfera gay da cidade, Milk decide lutar pela causa homossexual na política. Na primeira vez ele é derrotado nas urnas, mas na segunda ele vence e se depara com um grande inimigo que também é eleito: o ultraconservador Dan White. Não por acaso, é ele mesmo que, em um acesso de raiva, dá um tiro e assassina Harvey Milk, em 1978.
Com esse currículo, Milk parece ser um herói perfeito para uma ópera. Ou pelo menos para uma "docu-ópera"', como estão sendo chamadas algumas produções contemporâneas (leia texto ao lado).
Porém, mesmo dentro dessa categoria, "Harvey Milk" não impressiona. Importante por ser a primeira produção com um tema abertamente gay a ser interpretada por companhias tradicionais, a ópera é ambiciosa em seu libreto e ligeira em sua música.
Oprimido pela auto-repressão da sua homossexualidade, mais sua herança judaica, Milk é um personagem sufocado. Na interpretação bastante elogiada do barítono Robert Orth, Milk ganha surpreendente credibilidade.
E acredite que um papel destes precisa de muita credibilidade, especialmente por ter que dividir sempre a cena com elementos tão inesperados quanto um coro masculino todo vestido de mulher, mais de uma cena romântica entre dois cantores (uma inclusive na cama) e uma enorme imagem de Maria Callas que mais de uma vez assombra o cenário.
A relação nada velada entre o universo gay e a ópera inevitavelmente aparece em "Harvey Milk". Por exemplo, é durante uma performance da Ópera do Metropolitan que o adolescente Milk pergunta para sua mãe quem são "aqueles homens sem mulheres". Essa foi provavelmente uma das passagens que Korie, que é gay, teve que explicar para o compositor Stewart Wallace -que não é gay e, por isso, sugeriu adaptações ao libreto original.
Mas, fora algumas conexões óbvias, a obra dificilmente deverá fazer parte de um repertório clássico. Se em alguma montagem futura um "bravo" for ouvido na platéia, as chances são de o elogio ser mais pelo precedente que "Harvey Milk" abre para o assunto nos palcos operísticos do que pela sua presença musical.

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