São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A geléia filantrópica

ROBERTO CAMPOS

"Os indivíduos devem comportar-se da forma mais justa possível, mas os resultados para os indivíduos separados não serão nem os pretendidos nem os previstos por outros, de forma que as situações resultantes não podem ser chamadas nem justas nem injustas."
(Friedrich A. Hayek)

Em maio de 1978, quando embaixador em Londres, recebi a visita do professor Eugênio Gudin. Homenageei-o com um jantar, para o qual convidei lorde Robbins, o tutor de várias gerações da London School of Economics, e o grande liberal austríaco Friedrich Hayek. Este presenteou-me com seu livro autografado "New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas", que acabara de sair do prelo. E chamou-me atenção pra o Capítulo 5, que começa com uma confissão: há dez anos, se preocupava ele, infrutiferamente, em entender o sentido da expressão "justiça social". Desde então, se passaram mais de três lustros, Hayek faleceu e sou eu que continuo perplexo ante o terrível encantamento dessa expressão, hoje obrigatória em nosso discurso político. Usam-na um sociólogo, como Fernando Henrique, uma antropóloga, como a primeira-dama, um cardeal como d. Paulo Evaristo Arns, com tal ar de superioridade moral que eu me acho o último dos miseráveis em não enxergar o significado da coisa. (O cardeal Arns, aliás, parece-me um ateu, pois atribui todas as injustiças sociais ao neoliberalismo ou ao capitalismo, esquecido de que Deus criou os homens desiguais, fabricando Caim e Abel, Einstein e Al Capone, pois são todos filhos do Criador. Em outras palavras, Deus não foi suficientemente socialista; e caberia aos "justiceiros" como d. Evaristo mobilizar-se politicamente para corrigir os erros divinos...)
O princípio basilar do liberalismo (e também do capitalismo) é que a primeira propriedade do homem é o seu corpo, com as suas faculdades. E seu primeiro direito o exercício dessas faculdades, até o ponto em que não prejudique o direito de terceiros. A expressão "justiça social" não faz sentido, porque não existe um "justiciador", nem critérios objetivos de justa distribuição. Numa sociedade de homens livres, muitos terão mais que os outros pensam que eles merecem, e ninguém pensa que tem tudo o que merece. A utopia da justiça distributiva só pode ser imposta autoritariamente, de modo a privar alguns do fruto de suas faculdades para dar a outros. Dois problemas surgem: destrói-se a liberdade e diminui-se a eficiência global, pois esta vem precisamente do esforço de cada um de desenvolver ao máximo suas faculdades. Isso parece óbvio, mas o socialismo real levou 70 anos e matou 50 milhões de pessoas para perceber tal obviedade!
Donde concluir Hayek que a noção de justiça social deve ser substituída pelo conceito de "normas justas de conduta". As regras do jogo é que devem ser justas; o resultado será sempre diferente, dependendo das faculdades e do esforço de cada um. Se "justiça social" significa igualizar os resultados, é uma mágica besta, um simples "atavismo" do discurso político, como dizia Hayek. Se o significado é igualizar as condições, o objetivo é também frustrante, porque as famílias são diferentes; e, a não ser que se queira destruir a organização familiar (como o tentaram fazer stalinistas e maoístas na fase paranóica de suas revoluções), os indivíduos crescerão em condições desiguais. A única tarefa realista para os governos é procurar melhorar as "oportunidades", ou antes, remover obstáculos para que os indivíduos exerçam ao máximo as faculdades que Deus lhes deu. Três tarefas parecem essenciais. A primeira é controlar a inflação, já que ela é um imposto antidemocrático (porque não votado) e especialmente cruel para os pobres. Curiosamente, no Congresso, em Brasília, discute-se muito mais o aumento de salários futuros do que meios de preservar o valor do salário presente. Há entusiasmo passional no debate sobre o nível do salário mínimo e lenta frieza no exame de meios de preservar seu valor (reformas fiscal e previdenciária). A segunda é remover obstáculos ao pleno uso das faculdades do cidadão. Isso exige a universalização da educação básica (sobretudo das mulheres, pois tem-se assim, como subproduto, o controle da natalidade). É sabido que gastamos demasiado na educação universitária gratuita (que os ricos deveriam pagar, enquanto as famílias pobres teriam vales-educação) e criamos um funil na educação secundária. A intervenção governamental na educação costuma assumir a pior forma possível: o controle das mensalidades escolares. O efeito é contraproducente: reduz-se a oferta, e baixa a qualidade das escolas privadas, sem que aumente a oferta de escolas públicas.
Mesmo removidos obstáculos ao exercício das faculdades individuais, restarão desvalidos ou desequipados para o mercado de trabalho. Cabe ao governo, no interesse de preservar a coesão social, garantir-lhes um "mínimo vital".Isso deve ser feito por meios tão desburocratizados quanto possível, deixando-se aos indivíduos a responsabilidade de usá-lo para sua subsistência. Hayek fala na "rede de segurança" para os pobres e Milton Friedman no conceito de "renda mínima", ou Imposto de Renda negativo. Ambos advertem contra os perigos da complexa burocracia assistencialista dos Estados modernos, que acabam dando aos assistentes boa parcela dos recursos destinados aos assistidos.
Para o exercício dessas funções básicas, o governo tem o direito de privar o cidadão de parte do fruto do seu trabalho. São os impostos. Mas estes devem ser "votados" (o que exclui o imposto inflacionário), "moderados" (de forma a não interferir com os incentivos ao esforço produtivo) e cobrados de forma "simples" (para evitar burocracias fiscais) e "justa" (evitando-se privilégios e isenções). Certamente não são essas as características do nosso sistema fiscal.
Do ponto de vista liberal, o melhor imposto é aquele que menos interfere com uso intensivo das faculdades criativas do indivíduo. Sob essa ótica, o Imposto de Renda é viciado e, quando progressivo, uma safadeza... Viciado, porque afeta direta e negativamente o uso das faculdades produtivas, pois, quanto mais intenso o esforço, maior o quinhão do governo. A coisa é tolerável se o imposto é proporcional à renda. Se for progressivo, isso significa que, quanto mais diligente, criativo ou sortudo for o indivíduo, isto é, quanto mais ele contribuir para a produtividade global do sistema, maior será sua punição!...
Uma coisa que sempre me pareceu melancólica no Brasil é a operação inexorável da "lei da entropia burocrática". Idéias e instituições sofrem rápida degradação energética. Os governos que se sucedem acham desinteressante reformar e melhorar. Preferem destruir e reinventar. Lembro-me do Estatuto da Terra, de 1964, nunca implementado, que teria abrandado o ritmo das migrações rurais que incharam as metrópoles. O BNH é outro exemplo. Trouxe importante contribuição à desfavelização. Operou bem durante mais de uma década, criando uma tecnologia de infra-estruturas urbanas. Passou depois a subvencionar a classe média, sofreu inchaço político e alguma corrupção. Ao invés de melhorado e expurgado, foi abolido em 1986, perdendo-se o núcleo de cultura habitacional que se havia criado.
Uma outra iniciativa importante, o Mobral, na área de alfabetização, que chegou a um alto grau de mobilização comunitária, pereceu por ciumeira burocrática do Ministério da Educação. A última vítima foi a Legião Brasileira de Assistência. Seus estatutos, concebidos por dona Darcy Vargas, foram surpreendentemente esclarecidos para a época. Constituía nada menos que um ministério materno-infantil, atacando os problemas assistenciais no seu nascedouro -a unidade familiar. Nos últimos tempos, sofreu inchaço político e corrupção administrativa. Mas seu pessoal de linha de frente tinha adquirido respeito nas favelas e exibia razoável grau de fervor missionário nas creches e casulos. Foi agora dissolvida em favor do esquema impreciso da "Comunidade Solidária", interrompendo-se convênios e contratos. Apesar de nobres intenções, esse programa não passa até agora de uma geléia filantrópica. Descontinuidades e a desgraçada lei da entropia burocrática são os grandes inimigos da "justiça social", se é que essa coisa existe...

Texto Anterior: CNT nega irregularidade em negócio
Próximo Texto: Ataque a FHC ofusca elogios de americanos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.