São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O JARDIM DO ÉDEN FICOU MAIOR

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Silvina de Souza Santos (1890- 1987) era uma flor de pessoa. Roceira analfabeta de Rio de Contas, cidade da Chapada Diamantina no centro da Bahia, dava pousada e comida a botânicos ingleses e brasileiros que começaram a frequentar a região em 1974. Chorava toda vez que iam embora.
Agora poderia rir. Silvina virou flor. Seu nome batiza uma das 131 novas espécies de plantas descobertas em Pico das Almas, uma montanha de 1.958 m de altitude logo ao lado do sítio em que vivia.
É um arbusto de folhas aromáticas, da mesma família da hortelã e do manjericão, chamado pelo botânicos de Hyptis silvinae.
Silvina foi longe. A Hyptis silvinae e outras 130 plantas até então desconhecidas pelos cientistas serão descritas em "Flora of Pico das Almas", um livro de 800 páginas dos Jardins Botânicos Reais, do Reino Unido, previsto para ser lançado no próximo mês.
"É impressionante descobrir tantas plantas no fim do século 20", diz Simon Mayo, 45, botânico do Kew Gardens, nome pelo qual o jardim botânico real é conhecido, que trabalhou na região com pesquisadores da USP.
É uma barbaridade quando se compara com outras descobertas botânicas. As 131 novas plantas do Pico das Almas foram encontradas em 171 km2, o equivalente a 108 parques como o Ibirapuera de São Paulo, dentro de um universo de 1.200 espécies.
Levantamento feito na Juréia, reserva de Mata Atlântica no sul do Estado de São Paulo com área 4,5 vezes maior do que a do pico, revelou seis novas espécies entre as 700 que a região abriga.
Trocando em miúdos: as descobertas no Pico das Almas equivalem a 10,9% do total de espécies da região; as da Juréia, 0,85%.
"A natureza ficou maior, mais bonita e mais complicada com o Pico das Almas", resume José Rubens Pirani, 37, professor de botânica do Instituto de Biociências da USP, que pesquisou a área.
Principalmente mais complicada: para fazer o livro, o Kew Gardens mobilizou 73 botânicos para escrever os textos (27 brasileiros), consultou outros 50 e checou em cerca de 3.500 herbários se as espécies eram novas de fato. Eram.
A montanha
Por que tanta novidade? Há pelo menos duas razões: uma histórica e outra geológica.
Quando botânicos ingleses e do Centro de Pesquisa do Cacau chegaram ao Pico das Almas em 1974, um único pesquisador havia estado lá: o alemão Philipp von Luetzelburg (1880-1948), funcionário da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, em 1913.
Os naturalistas alemães Spix & Martius passaram por Rio de Contas em 1818, falam em morro das Almas no livro "Reise in Brasilien", mas nunca subiram ao pico.
"Encontramos tantas espécies porque era um lugar praticamente virgem. A diversidade de plantas lá pode ser comparada à da Amazônia", afirma Ana Maria Giulietti, 48, chefe do departamento de Botânica da USP.
Era um lugar virgem e especialíssimo. O pico faz parte da serra do Espinhaço, a maior cadeia de montanhas do Planalto Central.
Foi formado a partir do Paleozóico -entre 570 milhões e 270 milhões de anos atrás. Há 65 milhões de anos sofreu mudanças.
O solo, de areia e rochas, é pobre. A região em volta da Chapada Diamantina é seca.
No Pico das Almas a coisa é diferente. Chove seis meses por ano, quando na área que rodeia a chapada há dois meses de chuva, se tanto. Há uma neblina constante, que vem do Atlântico.
E tem a altitude -a pesquisa do Kew Gardens e da USP só considerou as plantas que nascem acima de 1.000 m, nos chamados campos rupestres.
A variedade decorre disso tudo -solo arenoso e pedregoso, umidade, variação de altitude e a consequente mudança de temperatura. Em 1913, por exemplo, Von Luetzelburg anotou que fazia 7º C no pico no início de agosto.
O refúgio
Se a variedade é explicável, ninguém sabe ao certo por que essas plantas foram parar lá. Da Physocalix só se conhecia duas espécies, encontradas em Minas -o pico tem a Physocalix scaberrimus, que só nasce lá.
Nem por que a flor da Spigelia flava do pico tem a cor amarela, quando a das suas parentes são rosa, laranja ou lilás.
A hipótese mais provável é a "teoria do refúgio", segundo a qual montanhas funcionam como ilhas durante as mudanças climáticas da Terra.
Na última glaciação, há 14 mil anos, as regiões polares aumentaram e a América do Sul ficou mais seca. A floresta amazônica encolheu -suas plantas não têm afinidade nem com frio nem com clima seco. As espécies habituadas a esse tipo de clima, como as do pico, se expandiram.
Uma das evidências de que a flora do Pico das Almas ocupava uma área muito maior é que espécies idênticas foram encontradas em partes do litoral da Bahia até o Rio e nas montanhas de Roraima.
Quando a Terra voltou a esquentar, há 12 mil anos, a floresta amazônica cresceu e a caatinga encolheu. A flora do pico ficou limitada à área e se diversificou.
A razão é que havia duas barreiras pela frente -a montanha e a caatinga ao redor.
"Ninguém sabe exatamente o que aconteceu, mas a hipótese mais provável é que o Pico das Almas foi um paraisinho propício à vida durante as mudanças climáticas", arrisca Pirani da USP. "Foi a repetição das mudanças que provavelmente gerou a diversidade".
O pico é o que os ingleses chamam de "species pump" -bomba geradora de espécies. O fenômeno é raro no mundo. Ocorre na região do Cabo (África do Sul), em Chocó (parte ocidental dos Andes na Colômbia) e no sudoeste da Austrália, segundo Mayo.
O Kew Gardens se interessou pelo pico justamente porque o "paraisinho" estava ameaçado.
"Há um risco real de destruição dessa flora por causa do turismo e do desenvolvimento", diz Brian Stannard, 50, pesquisador do Kew Gardens e editor do livro "Flora of Pico das Almas".
Foi por causa desse risco que o Kew Gardens já fez seis expedições ao pico, de 1974 a 1994. A maior delas, em 1988, custou US$ 131 mil, divididos entre o Kew Gardens, a USP e a National Geographic Society dos EUA.
A fragilidade da flora foi atestada por Renato de Mello-Silva, 34, professor de botânica da USP que descobriu três espécies novas no Pico das Almas.
Uma delas, a Vellozia campanuloides, arbusto da família da canela-de-ema, estava concentrada numa área de 15 m2, igual a uma sala de 5 m x 3 m.
A ambição de Brian Stannard é que o livro possa gerar um programa de turismo para a região que leve em conta a flora.
Mello-Silva acha que se enxames de turistas atacarem o pico "pode não sobrar nada".

FLORA OF PICO DAS ALMAS. Brian Stannard (editor), Royal Botanic Gardens, 800 págs., 41,40 libras (cerca de R$ 61,00). Pode ser encomendado pelo correio (Kew Gardens, Richmond, Surrey, TW9, 3AB, England).

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