São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1995
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"Cantando na Chuva" é obra-prima coletiva

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Não é o melhor musical de todos os tempos. É bem mais do que isso: é o melhor filme sobre o cinema. Como simples musical, teria de dividir a "pole position" com outros clássicos do gênero.
Como obra sobre cinema, "Crepúsculo dos Deuses" seria melhor se tivesse um diretor americano. Mas um vienense como Billy Wilder teria de aproveitar o tema para se esponjar em temática mais complexa: a decadência de tudo no seu devido tempo, às vezes antes.
"Cantando na Chuva" é uma das poucas expressões bem-sucedidas do que é e do que pode uma arte coletiva. Não tem atrás de si um gênio solitário e poderoso. É o resultado de uma convergência de um grande estúdio na época dos grandes estúdios: um produtor iluminado, um elenco profissional, um propósito determinado. E, acima de tudo, uma idéia que só podia nascer no cinema e para o cinema.
A idéia foi o aproveitamento da equipe reunida num musical anterior, "Sinfonia de Paris". Poderia resultar num subproduto. No final de 1950, enquanto supervisionava o espetacular balé montado numa Place Concorde inspirada em Raoul Dufy, o produtor Arthur Freed achou que podia fazer um filme do qual só tinha o título: "Cantando na Chuva", um sucessor musical que, desde 1929, já participara de vários filmes. Um título seu, pois era o autor da letra da música mais popular de Nacio Herb Brown.
Juntou dois roteiristas que já haviam trabalhado com ele em outras produções (Betty Comden e Adolph Green), ofereceu a direção a Gene Kelly, que não estava cem por cento satisfeito com Vincent Minnelli. Kelly lembrou-se de um bailarino com quem dançara em 1939: Stanley Donen.
Estava montado o chassi de um dos maiores filmes de todos os tempos, que pode ser citado com "Aurora" (Murnau), "Encouraçado Potemkin" (Eisenstein), "Tempos Modernos" (Chaplin), "Cidadão Kane" (Welles), qualquer obra de Fellini, Ford, Buñuel, Lang ou Bergman.
Voltando à idéia do filme: contar de forma bem-humorada a impostura que é o cinema. O clima da produção ficou parecido com as chanchadas italianas, em que os atores não parecem estar trabalhando, mas se divertindo.
Valia citar o próprio cinema sem aspas. Desde as roupas de Rodolfo Valentino às broncas de Busby Berkeley e à moedinha que George Raft joga no ar em "Scarface". O próprio produtor deixou-se gozar. Afinal, ele sabia o que estava fazendo. O escore musical era dele e de Brown.
Ficou valendo até mesmo um plágio assumido de Cole Porter no número "Make'em Laugh".
O pretexto era mostrar o momento da verdade no cinema quando, além da imagem, ele foi obrigado a incorporar o som. E raríssimas vezes o cinema reuniu as duas coisas de forma tão simples e encantadora.
A impostura foi tal e tanta que a deliciosa Jean Hagen ("Asphalt Jungle") foi dublada na ficção por Debbie Reynolds e, na produção real, dublou sua dubladora. Gene Kelly soltou-se, teve seu maior instante cinematográfico no número da chuva: encharcado e feliz, ele se tornou um dos logotipos dos anos 50 e do próprio cinema.
Agora, modéstia a parte, o melhor personagem do filme é a velha orquestra da MGM conduzida por Lennie Hayton. "Cantando na Chuva" é uma obra de arte coletiva em que até o mais longínquo e obscuro espectador, com grau menor ou maior de modéstia, tem a certeza de que dela participou.

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