São Paulo, sábado, 29 de abril de 1995
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Previdência _ receitas para engolir o sapo

ROSA MARIA MARQUES; ANDRÉ CEZAR MEDICI

ROSA MARIA MARQUES e ANDRÉ CEZAR MEDICI
Existe, hoje, um nebuloso consenso de que a reforma da Previdência é um "sapo" a ser digerido. As divergências encontram-se, no entanto, em como preparar o sapo, nos temperos e acompanhamentos que devem ser servidos e na forma de apresentação do cardápio.
No mês de março, o governo decidiu que seria mais fácil apresentar o menu em etapas. Como entrada, seriam servidas algumas reformas suculentas ao Executivo e Legislativo, as quais aumentariam os graus de liberdade no manejo orçamentário, com possíveis impactos no crescimento das receitas e na redução das despesas.
Quanto ao prato principal, não haveria como fugir do sapo, isto é, deveriam ser encaminhados os itens mais duros, os quais alteram direitos dos contribuintes e obrigações do Estado. Como sobremesa (quem sabe?), poderia ser servido algum antiácido para as finanças públicas, como, por exemplo, a criação de meios de financiamento para a transição do sistema, a qual, feita sem cuidado, poderá representar uma catástrofe para os cofres públicos.
No entanto, mesmo na aparentemente suculenta entrada do cardápio, representada pelo projeto de lei encaminhado recentemente ao Congresso, não há como deixar de apontar alguns aspectos polêmicos, como a unificação das alíquotas de contribuição dos empregados e a exigência de carência para a concessão de pensão por morte, auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez.
A introdução de uma alíquota única para os trabalhadores, de 9%, em substituição às três atualmente vigentes (8%, 9% e 10%, dependendo do nível do salário) é um tanto indigesta para quem defende que a arrecadação deve manter algum sentido redistributivo. Como o sistema é de repartição simples, não exigindo proporcionalidade entre a alíquota paga e a expectativa de direito de benefícios, seria natural que o esforço de contribuição dos mais pobres fosse proporcionalmente menor.
Provavelmente, a opção pela unificação das alíquotas, além da simplificação de procedimentos de cálculo, está vinculada a uma expectativa de aumento das receitas.
Outra providência nesse sentido, contida no projeto de lei, é a introdução de uma alíquota única de contribuição de 20% para os autônomos, profissionais liberais, empregadores e facultativos, em substituição às atuais alíquotas, que variam de 12% a 20%. Essas medidas, conforme declaração do ministro Reinhold Stephanes, podem aumentar a arrecadação anual previdenciária em US$ 4,8 bilhões, o que, dadas as atuais perspectivas de déficit do sistema, não é uma soma desprezível.
O curioso é que medidas voltadas ao aumento das receitas são aparentemente contraditórias com o diagnóstico prévio do próprio governo, o qual dizia que a carga previdenciária paga pelas empresas (incluindo a contribuição dos empregados) é excessiva. Aumentos nas alíquotas têm sido utilizados no Brasil sempre que se avizinha uma crise da Previdência, independentemente do credo político ou ideológico do governo.
Já a introdução da carência para a aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e pensão por morte é bastante discutível, por negar a lógica universal de que riscos não-previsíveis não devem ser objeto de carência, uma vez que não há cálculos atuariais que possam dar substrato a esse argumento.
Essa medida desvirtua princípios básicos e coloca os indivíduos, ainda que por pouco tempo, na vala comum da desassistência, pois mesmo as regras de concessão dos benefícios assistenciais exigem que o segurado tenha uma idade mínima, sejam inabilitados por deficiência física e comprovem 12 meses de filiação à Previdência, em qualquer época, de forma consecutiva ou não.
Assim, por mais economicamente atrativas que sejam as medidas contidas no menu de entrada, elas se restringem a aspectos mais conjunturais, não atacando os problemas estruturais que de fato desestabilizam a situação financeira da Previdência, como os altos índices de sonegação e evasão (hoje estimados em 30% das receitas), o peso das atividades econômicas exercidas na sombra da informalidade e a ineficiência gerencial da máquina previdenciária.
O próprio ministro Reinhold Stephanes, em seu livro "Previdência Social: Uma Solução Gerencial e Estrutural", nos leva a concluir que uma ação coordenada entre o Ministério da Previdência, o Ministério do Trabalho e a Receita Federal poderia resultar num aumento substantivo da receita de contribuições, sem que houvesse necessidade de aumentos nas alíquotas.
Se medidas administrativas e gerenciais não chegam a resolver todos os problemas da Previdência, principalmente aqueles decorrentes do processo de envelhecimento da população brasileira, poderiam trazer o lastro necessário para que possamos enfrentá-los mais tranquilamente no futuro.
Afinal, não fosse o alto nível de evasão e o elevado grau de informalidade do mercado de trabalho, a estrutura etária da população brasileira, marcada nos anos 90 pelo maior peso relativo da população em idade ativa, seria extremamente favorável para a Previdência, caso houvesse perspectivas de crescimento econômico com expansão de empregos formais.
Sendo assim, mais uma vez se coloca o paradoxo de que os problemas da Previdência Social no Brasil são apenas parte de um enorme emaranhado de questões estruturais que devem ser enfrentadas conjuntamente, no afã de reformar o Estado e a sociedade no Brasil.
A difícil digestão do sapo poderia ser mais palatável no seio de um cardápio mais amplo e variado de medidas sociais e econômicas que se articulassem num projeto nacional de desenvolvimento e não apenas de estabilização.
ROSA MARIA MARQUES, 42, é professora do Departamento de Economia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e técnica da área de Políticas Sociais do Iesp/Fundap (Instituto de Economia do Setor Público da Fundação do Desenvolvimento Administrativo).

ANDRÉ CEZAR MEDICI, 37, economista, é coordenador da área de Políticas Sociais do Iesp/Fundap e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres).

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