São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Patentes, pirataria e indústria farmacêutica

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Por ocasião da chegada aos EUA do presidente Fernando Henrique, pelo menos dois jornais norte-americanos de grande circulação local publicaram um anúncio patrocinado pela associação que congrega as indústrias farmacêuticas daquele país, qualificando o Brasil como nação pirata.
A razão seria o Brasil não ter uma legislação patentária própria "adequada" no setor de remédio, pois recentemente o Brasil já aderiu na Rodada do Uruguai ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) que inclui um capítulo sobre patentes (Trips).
Para melhor entender a questão patentária internacional, vamos caracterizar rapidamente as três vertentes que presentemente enfrentamos.
Em 1883, a convenção de Paris estabeleceu os princípios básicos pelos quais os países signatários regiam suas relações externas no que diz respeito à propriedade intelectual. Fundamentalmente ficou estabelecido que uma patente registrada em um país-membro seria automaticamente respeitada nos demais por 12 meses. Após este período a patente deveria ser registrada em cada país para ser válida.
De acordo com este documento e seus sucessivos ajustes, as legislações próprias das nações são respeitadas, inclusive salvaguardas históricas, tais como o direito de governos de suspensão do privilégio se este for considerado danoso à economia do país, e a licença compulsória pela qual uma nação se reserva o direito de transferir a terceiros o direito de uso da inovação patenteada, se o detentor do direito dele não fizer uso em determinado período de tempo.
Aliás, uma evidência de que o que se busca com uma legislação patentária é o estímulo à produção interna, e não a retribuição ao inventor ou o incentivo à pesquisa, é que muitas legislações européias tradicionais não distinguem entre inventor e introdutor no país de uma inovação.
Tem direitos ao monopólio quem se dispõe a produzir no país. E como consequência, é regra geral nas legislações internas dos países europeus a exigência de uso efetivo da aplicação da patente na produção. A sociedade espera receber, em troca do monopólio concedido, alguns benefícios palpáveis imediatos que somente a produção assegura. Faturamento, emprego, atividade econômica.
Países diversos entraram e saíram desta organização, a OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual), de acordo com suas conveniências. Os EUA, por exemplo, não respeitaram os direitos autorais (copyrights) até que o Gatt exigiu sua adesão em 86.
No setor farmacêutico, muitos países só aderiram à OMPI tardiamente. Portanto, se empresas brasileiras no setor farmacêutico são piratas, canadenses o foram até 1976, italianos, holandeses e suíços até 1978, dinamarqueses até 1983, coreanos, austríacos e chineses de Formosa até 1987 e espanhóis até 1992.
E por que será que estes países resistiram tanto tempo a aderir a este acordo? A razão é que estavam convencidos de que prejudicariam suas indústrias nascentes no setor farmacêutico antes que se consolidassem. Como deveria fazer o Brasil.
A segunda vertente se relaciona com o capítulo relativo a direitos autorais, denominado "Trips", do acordo de comércio exterior, Gatt, em sua última versão. Neste acordo foram incluídos alguns tópicos que estão em conflito direto com os conceitos originais da convenção de Paris.
O primeiro ponto que fere frontalmente os interesses dos países menos desenvolvidos tecnologicamente é a proibição aos signatários de incluir em suas legislações locais a exigência de uso da patente na produção e aceitar como suficiente a importação do produto resultante do país de origem da patente. Ou seja, a patente agora é usada para estabelecer um monopólio para uma empresa cujo único vínculo com o Brasil, se tanto, foi ter contratado um advogado de patente para registrar um papel no cartório adequado.
Recente contabilidade revelou que, das 3,5 milhões de patentes em vigência em todo o mundo até meados da década passada, apenas 200 mil eram registradas no Hemisfério Sul e, destas, apenas 6% beneficiavam indivíduos ou empresas locais. Ou seja, apenas 0,3% das patentes existentes privilegiam os países em desenvolvimento, apesar de estes conterem uma população seis vezes maior que os desenvolvidos.
Podemos, pois, excluir qualquer consideração sobre reciprocidade pelo fato de todos os signatários se submeterem às mesmas regras. Seria o mesmo que justificar uma luta entre Mike Tyson e Betinho dizendo que as regras do boxe são as mesmas para os dois.
O Trips também exige que a legislação brasileira conceda patente a micro-organismos, campo em que a humanidade ainda não acumulou conhecimento na escala necessária para estabelecer uma legislação. Ora, se ainda estamos discutindo os procedimentos aceitáveis para a pesquisa, como é que podemos legislar sobre a concessão de monopólios e outras características comerciais?
Entretanto, este convênio, o Trips, para que fosse aceito pelos países em desenvolvimento, teve de fazer alguma concessão. Sua carência é de dez anos. Além do mais, reconhece a licença compulsória apenas de forma limitada. Mas estas duas concessões são pequenas. Se praticamente tudo que os norte-americanos querem já está incluído no Trips, então por que tanta pressão para que o Brasil aprove uma legislação interna?
Uma lei patentária interna virá necessariamente mais tarde e poderá sobrepor-se ao acordo incluso no Gatt. Além do mais, este talvez seja o momento político mais conveniente para aprovar uma lei benevolente. Por isso, os esforços se redobram. Mas alguns pontos precisam ser esclarecidos.
Em primeiro lugar, a legislação da maneira que foi proposta originariamente não tem similar em todo o planeta, com a exceção do México. O Congresso da Argentina resiste até agora, apesar das pressões do presidente Menem, à semelhança de FHC. Não é verdade que a indústria farmacêutica norte-americana perca US$ 600 milhões por ano devido à inexistência da Lei de Patentes no Brasil para este setor específico, como foi declarado pela associação empresarial respectiva durante esta última viagem do presidente do Brasil aos EUA.
Em 1990, apenas US$ 114 milhões se referiam a remédios patenteados no exterior, do US$ 1,45 bilhão dos 200 remédios mais vendidos no Brasil de um mercado total de US$ 3,74 bilhões. Destes, as cópias produzidas por empresas brasileiras perfaziam somente US$ 23 milhões.
Se os restantes US$ 91 milhões de remédios com patente no exterior foram pirateados, então o foram pela própria indústria multinacional aqui instalada. O que há, portanto, de cópia nacional do produto sob patente é praticamente desprezível, pouco mais de 1%.
Então, por que tanto esforço? A menos que o projeto seja mudar o perfil da oferta de remédios à população brasileira. Ou seria para assegurar uma divisão internacional do trabalho e a predominância permanente do cartel internacional que já controla o suculento mercado de US$ 600 bilhões?
Uma patente concede um privilégio para a ocupação de um mercado. Quem obtém mais patentes são empresas e nações que mais pesquisam. Quem mais pesquisa é quem já é mais rico e controla maiores parcelas de mercados. Consequentemente, por natureza, a legislação patentária amplifica as diferenças existentes entre grandes e pequenas empresas, entre países ricos e pobres, entre os hemisférios Norte e Sul. Uma legislação patentária consolida o status quo, para dizer o menos.
É por isto que não há nenhuma nação em desenvolvimento favorável à legislação patentária, e há tanta pressão das nações desenvolvidas para que aquelas em desenvolvimento as adotem. Não há mistério.

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