São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Convite à filosofia?

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WALDYR A. RODRIGUES JR.
A pesar do comentário favorável de Maria das Graças de Souza Nascimento (``Jornal de Resenhas" de 03.04.95) sobre o ``Convite à Filosofia", de Marilena Chaui (Atica, 1995), fato é que o livro contém um conjunto de afirmações completamente errôneas e/ou superficiais, em particular no que concerne às ciências físicas.
Existem erros que podem ser identificados por qualquer jovem que tenha cursado o segundo grau como, por exemplo, o enunciado completamente sem sentido da lei da gravitação universal de Newton, que aparece na página 21. Outros erros podem passar desapercebidos em uma primeira leitura até para algumas pessoas cultas, sem proficiência adequada nas ciências naturais. De fato, as conclusões filosóficas que a dra. Chaui tira das teorias da relatividade e da mecânica quântica são frutos do que denomina-se pseudocultura, um mal que contamina boa parte dos intelectuais brasileiros.
No que segue, analisaremos somente algumas afirmações do parágrafo ``Acaso ou indeterminação" do cap. 3, onde a dra. Chaui menciona três aspectos com os quais podemos perceber como e porquê o acaso ressurgiu nas ciências exatas. Diz nossa autora que:
``O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da causalidade e o determinismo universal exige que seja mantida a idéia de substância, isto é, de uma realidade que permaneça idêntica a si mesma, seja causa de alguma outra e efeito de alguma outra. Esta realidade pode ser uma matéria, uma energia, uma massa, um volume, mas tem que ser alguma coisa com propriedades determináveis, constantes e que possam ser conhecidas. Deve ser uma quantidade constante e/ou uma forma constante. Ora, a microfísica ou física quântica veio mostrar que não há nem uma coisa nem outra.
O estudo do átomo de hidrogênio revelou que a quantidade de matéria ou massa não permanece constante, mas transforma-se em energia, e esta também não permanece constante, mas o que é pior, não se transforma em coisa alguma: simplesmente se perde, desaparece, não se sabe para onde foi, nem o que lhe aconteceu. A quantidade, portanto, não permanece constante."
Ora, o estudo do átomo de hidrogênio, bem como de todos os demais processos físicos estudados pelo homem, mostram que, contrariamente à afirmação da dra. Chaui, a energia é sempre conservada. Tal afirmação não significa que não existam teorias físicas onde a energia satisfaça esta propriedade. De fato, a badalada teoria da relatividade geral de Einstein (mal compreendida pela maioria dos físicos e até por muitos daqueles que se dizem relativistas, dada a sofisticação do aparato matemático apropriado a sua formulação) contém modelos onde a energia não é conservada e muitos desses modelos são usados pelos relativistas como expressão de certas facetas de alguns sistemas físicos. Obviamente, não tenho a pretensão de alongar-me neste assunto aqui, mesmo porque nosso discurso enveredaria necessariamente para um nível de tecnicidade que, infelizmente, é de domínio de poucos. Recomendo para o leitor que ficou curioso meu recente artigo com Y. Bozkhov ``Again on the Mass and Energy in General Relativity" (em publicação no periódico ``General Relativity and Gravitation"). Também chamo a atenção do leitor que o fato de a relatividade geral não conter leis da conservação, levou-me recentemente a propor uma teoria alternativa da gravitação em espaço-tempo de Minkowski usando uma nova teoria matemática -fibrados de Clifford (recentemente desenvolvida por mim e colaboradores). Esta teoria incorpora de partida as leis de conservação e passa por todos os testes experimentais existentes.
Mas retornemos ao livro da dra. Chaui. É bem verdade que nos primórdios da história da Mecânica Quântica (MQ), Bohr, Kramers e Slater (BKS), em 1924, desenvolveram uma teoria para explicar a emissão e absorção de fótons por átomos de hidrogênio onde a energia não era conservada. Lemos no trabalho desses autores ``...we abandon on the other hand any attempt at a causal connection between the transitions in distant atoms, and specially a direct application of the principles of conservation of energy and momentum so characteristic of the classical theories". A teoria BKS foi logo abandonada e a teoria quântica moderna (Eletrodinâmica Quântica), que descreve a interação entre partículas dotadas de carga elétrica e fótons (radiação eletromagnética), é baseada nos princípios de conservação da energia e do momento.
Depois de deduzir, não se sabe de onde, que a MQ implica na violação da lei da conservação da energia, nossa autora introduz o princípio de incerteza de Heisenberg. Aqui, a crítica básica é que não existe, em minha opinião, nenhuma forma de inteligibilidade do dito princípio, sem que se domine com maestria os fundamentos matemáticos da MQ. Sem esse domínio, pode-se rapidamente ser enganado pelas inúmeras afirmações sem sentido que aparecem em muitos livros de divulgação sobre o assunto. É importante enfatizar aqui que a versão divulgada pela maioria dos livros-textos de que a única interpretação coerente do formalismo da MQ é aquela dada pela Escola de Copenhagen, está longe de ser verdadeira. O excelente livro de F. Selicri, ``Quantun Physics and Reality" (Kluwer Acad. Publ. Dordrecht, The Netherlands, 1990), pode servir de antídoto para aqueles que acreditam que é necessário se conformar com o acaso nas teorias físicas.
As conclusões que a dra. Chaui tira das teorias da relatividade especial e geral de Einstein são as mais esdrúxulas do seu livro. Ela começa por afirmar que:
``O terceiro acontecimento que abalou o determinismo universal foi a teoria da relatividade de Einstein..."
Ora, é um fato pouco conhecido, mas de qualquer maneira verdadeiro, que as teorias da relatividade especial e geral de Einstein são superdeterministas. De fato, nestas teorias o espaço-tempo é dotado de uma estrutura tal que se pode provar que todos os eventos (que são pontos do espaço-tempo) são coexistentes. O argumento não é tão complexo que não possa ser seguido por um leitor inteligente, mas não tenho espaço suficiente aqui para tornar inteligível minha afirmação. Para os que desejem conhecer a fundo esta questão e outros aspectos do conceito de tempo na teoria da relatividade, aconselho a leitura de meu artigo (em colaboração com M. A. F. Rosa), ``The Meaning of Time in Relativity Theory and the Twin Paradox" (ver o periódico ``Foundations of Physics", 19, 705-724, 1989).
A conclusão do superdeterminismo levou-me, desde 1985, a procurar teorias alternativas à de Einstein. Alguns de meus esforços estão sumarizados em artigo que escrevi com J. Tiomno. Atualmente, existe grande excitação sobre estas questões, dado o fato que G. Nimtz (ver o periódico ``Physics Letters", A196, 154-158, 1994) conseguiu transmitir a 40ª Sinfonia de Mozart entre dois pontos do espaço a uma velocidade quase cinco vezes maior que a da luz!
A nossa autora continua sua ``aventura relativística" dizendo que:
``Ora, Einstein demonstrou que o tempo é a quarta dimensão do espaço e que, na velocidade da luz, o espaço encurva-se, dilata-se, contrai-se de tal modo que afeta o tempo. Assim, alguém que estivesse na velocidade da luz atravessaria num tempo mínimo um espaço imenso, mas os que ficassem abaixo daquela velocidade sentiriam o tempo escoar lentamente ou `normalmente'. Para a primeira pessoa, teriam se passado algumas horas ou dias, mas para outros, anos, meses, séculos.
Desta maneira, Einstein demonstrou que nossa física é tal como é porque depende da posição do observador ou do sujeito do conhecimento, isto é, um sujeito do conhecimento marciano ou venusiano produzirá uma física completamente diferente da nossa, porque o espaço é relativo ao observador. Assim sendo, nossa ciência da natureza não é universal e necessária em si mesma, mas exprime o ponto de vista do sujeito do conhecimento terrestre."
Novamente, é difícil comentar-se apropriadamente o trecho acima. De qualquer maneira, na relatividade especial a afirmação de que o espaço encurva-se, dilata-se ou se contrai não faz o mínimo sentido. O que a teoria da relatividade especial prediz é que para um corpo sólido em movimento uniforme em relação a um dado sistema de referência inercial, a projeção de seu comprimento na direção de sua velocidade é menor do que o valor encontrado para a mesma projeção quando o sólido encontra-se em repouso no sistema de referência inercial dado. Além disso, a teoria prediz que os tempos registrados por dois relógios idênticos que se encontram em dois eventos distintos no espaço-tempo (sendo sincronizados no primeiro evento) e que percorrem caminhos diferentes entre esses eventos (mais precisamente, linhas de universo diferentes) serão distintos.
As teorias de Einstein implicam, contrariamente à conclusão da nossa autora, que a física não depende do observador. Mais corretamente, existe uma formulação matemática das leis naturais que é completamente indiferente ao estado de movimento do observador. Assim, neste sentido, físicos terrestres, venusianos ou marcianos no mesmo estado de desenvolvimento científico usarão as mesmas leis. Esta afirmação não implica que detalhes de descrição para um dado fenômeno sejam idênticos. Por exemplo, se uma fonte de luz se aproxima da Terra e se afasta de Marte, a luz emitida na direção de Marte e detectada pelo observador marciano será descrita como sendo mais vermelha do que a luz proveniente da mesma fonte e detectada pelo observador terrestre. Os dois observadores munidos de uma mesma física saberão explicar de maneira trivial o resultado de suas observações.
Nossa inefável autora continua a desfilar suas conclusões sobre a teoria da relatividade como segue:
``Também a idéia de teoria nos permite falar na teoria universal (sic) da relatividade, elaborada por Einstein. Que diz ela? Que a medida da velocidade de qualquer movimento, seja este qual for, é a velocidade da luz; que nesta velocidade toda matéria se transforma em energia, deixando portanto, de possuir massa e volume".
A afirmação da dra. Chaui de que ``a medida da velocidade do movimento, seja ele qual for, é a velocidade da luz" é de morrer de rir, pois qualquer leitor que tenha cursado o segundo grau sabe, tão bem quanto eu, a definição de velocidade (tridimensional) de um corpo em relação a um dado sistema de referência.
O que nossa autora estava eventualmente tentando dizer (mas que certamente não compreendeu) é que o quadrado do quadri-vetor velocidade de qualquer partícula material é o valor do quadrado da velocidade tridimensional da luz quando se usa como comprimento de arco na linha de universo da partícula o tempo próprio.
Além disso, é necessário que fique claro que nenhum observador consciencioso, enquanto ocupar um corpo material, jamais poderá se deslocar com a velocidade da luz de acordo com a teoria da relatividade.
A afirmação da dra. Chaui que mais me deixou perplexo e que também mais me divertiu é:
``Do ponto de vista da velocidade da luz, todo movimento é relativo, isto é, não há como distinguir observador e observado..."
Ora, um observador é um sujeito cônscio e pode estar observando uma mula que passa correndo em um pasto...
Não conheço nenhum sujeito (a não ser que se encontre em um estado alterado de consciência) que seja capaz de sustentar semelhante afirmação. De qualquer maneira, no contexto da teoria da relatividade, até nosso observador alterado reconheceria a afirmação acima como bobagem.
O conjunto de incorreções que a dra. Chaui introduz em seu texto não se encerram com aqueles que discutimos acima, mas está na hora de encerrarmos nosso artigo.
Na página 12 de seu livro, encontramos a questão: Para que a filosofia? Diz nossa autora que os estudantes de filosofia conhecem uma resposta irônica: ``A Filosofia é uma ciência com a qual ou sem a qual o mundo vai tal e qual".
Apesar de meus comentários, não se deve concluir que a resposta irônica seja verdadeira, pois existem muitos textos bons sobre a filosofia das ciências físicas. Contudo, é óbvio que algo não está bem em um certo reino...

WALDYR A. RODRIGUES JR. é professor titular de física-matemática e diretor do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação (IMECC) da Universidade de Campinas (Unicamp); é autor de mais de 100 publicações em revistas internacionais especializadas, orientou nove teses de doutorado em física e matemática e foi professor visitante no MIT (1976-78), na Universidade de Trento (1987-88) e na Universidade de Perugia (1989). O autor se dispõe a enviar cópias das suas publicações mencionadas. Pedidos ao endereço IMECC-Unicamp, CEP 13081-970, Campinas, São Paulo

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