São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
Texto Anterior | Índice

Era uma vez no Maranhão

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Partidos e eleições no Maranhão
José Francisco Lisboa
Companhia das Letras, 340 págs.

João Francisco Lisboa escreveu ``Partidos e Eleições no Maranhão" em 1862, após o fiasco de sua carreira na política maranhense. Na sequência, viajou para a corte e para Portugal a fim de pesquisar documentos sobre o Brasil, dentro do projeto imperial que desemboca na edição da ``História Geral" de Varnhagen. Político fracassado e autor de uma história que ficou aquém do esperado, Lisboa deixou, entretanto, uma série de estudos influentes sobre o Brasil colonial. Meio século mais tarde, ao estabelecer um balanço da historiografia imperial, Capistrano de Abreu, crítico da obra varnhageniana, pensava que João Francisco Lisboa era um dos únicos historiadores da época capazes de empreender um livro mais bem acabado do que a ``História Geral". Aliás, junto com Rodolpho Garcia, Capistrano interpôs as análises de Lisboa nas notas da edição comentada da ``História Geral", contribuindo assim para tirar o grande intelectual maranhense do esquecimento.
Dispondo de contato marítimo mais rápido e mais frequente com Portugal do que com o Rio de Janeiro, São Luís entretinha em meados do século 19 publicações e debates de qualidade. Foi nessa São Luís que Odorico Mendes, Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa cresceram e fizeram sua cabeça. José Murilo de Carvalho afirma que se tratava de uma ``acanhada capital provincial". Guardadas as devidas proporções, a capital maranhense devia ser muito menos acanhada do que agora, sob o monopólio exercido pela família Sarney na mídia e na política estadual. Como explica o aleivoso provérbio atual (``ontem, a Atenas maranhense, hoje, maranhense, apenas!") a capital do Maranhão tinha muito mais cancha.
``Partidos e Eleições no Maranhão" -livro de ensaios publicados no ``Jornal de Timon", editado por Lisboa- está mais próximo do enfoque desabusado do político fracassado do que do ceticismo racional do historiador. Ao longo das páginas, Lisboa elenca as taras da politicagem maranhense. De pronto, o leitor verá aparecer uma funesta continuidade entre a política brasileira de ontem e de hoje. Como escreve José Murilo na sua introdução ao livro: ``Grandes gastos eleitorais, inclusive com dinheiro público; partidos personalistas, sem idéias e princípios; mudanças frequentes de partido; campanhas baseadas em insultos pessoais...; fome de empregos públicos; troca de favores; corrupção generalizada, impunidade; lei do cada um por si (hoje dita de Gerson); desmoralização social (hoje chamada crise de valores), tudo isso soa penosamente familiar e atual".
Quando analisarem nossa política atual, os historiadores do século 21 poderão avançar ainda mais longe nesta sequência patética: temos uma UDR (D para ``Democrática") formada pelos fazendeiros mais reacionários da América Latina, um PP (P para ``Popular") composto por banqueiros e -se me permitem a troça-, um PSDB (SD para ``Social Democrata") apoiado pelo patronato e bronqueado com os sindicatos. E daí? Devemos nos entregar ao fatalismo e pensarmos, como um russo caricaturado por Dostoievski, (mas parece que Turgueniev disse mesmo essa frase) que ``o debate suíço sobre os esgotos de Lausanne é mais interessante do que todas as questões políticas discutidas na Rússia"? O debate sobre o feminismo na Califórnia é mais interessante do que toda a discussão sobre o Brasil atual? Não faria mais sentido, para entender João Francisco Lisboa e a nossa história política, contornar a ironia quase queiroziana inscrita no livro e penetrar nas bases concretas da mixórdia eleitoral maranhense e brasileira?
Para tanto, é necessário dar pleno espaço a um evento que, como nota José Murilo, Lisboa cuidadosamente esquivou nestes seus ensaios: a Balaiada. Revolta paradigmática, a Balaiada reúne os ingredientes da crise interna gerada pela Independência: guerra racial, rivalidades econômicas regionais, resistência às reformas políticas impostas pelo governo provincial e central. Todo o sertão do Alto Itapicuru, Caxias e vizinhanças, tinha pouco a ver com São Luís. Pelas veredas do Piauí e da Bahia, essa área se conectava ao comércio de Salvador. O cartel formado pelos negociantes de São Luís trombava por ali com as redes de comércio ligadas à Bahia (daí o ``antibaianismo" que Lisboa deixa extravasar). Quando, ainda no final da Regência, se tentou criar cargos de ``prefeitos" regionais, agentes do governo que tiravam a autonomia das câmaras interioranas, a revolta estourou. Um movimento municipalista, mobilizado contra a redução das liberdades locais, pipocou pelo sertão. As coisas se passaram em dois planos.
No primeiro plano, no debate das idéias, a centralização, depois acentuada pelo ``Regresso" que se seguiu à Maioridade, tirava do eleitorado qualificado das cidades e das câmaras municipais, o controle sobre as prerrogativas essenciais do Estado e, em particular, sobre o monopólio da violência. De fato, até então eram os juízes eleitos localmente que organizavam e comandavam a força pública. Contra essa evolução se elevou o partido ``bem-te-vi", do qual Lisboa foi um dos ideólogos em São Luís. Não se trata, absolutamente, de um debate caipira. A querela é consubstancial à política norte-americana. Pode ser lida através do elegante debate constitucional entre Alexander Hamilton (centralista) e Thomas Jefferson, mas também pode ser captada no dramático noticiário do mês passado: os tarados que explodiram o prédio de Oklahoma são, à sua maneira, extremistas municipalistas. Mas na teoria a prática era outra.
Quando a revolta municipalista contra o poder provincial e central se alastrou, a realidade social brasileira veio à tona. Vaqueiros e jagunços do sertão de Caxias entraram em cena. Na outra ponta, aproveitando o conflito inter-oligárquico, os escravos comandados por Cosme -``imperador das liberdades bem-te-vi"- romperam as amarras do cativeiro. Este segundo plano -o da realidade concreta- paralisou os municipalistas e tirou Lisboa e outros políticos maranhenses da jogada. Luís Alves de Lima e Silva, interventor militar na província, levou seu assessor Gonçalves de Magalhães e baixou o pau em todo mundo. Ganhou assim o seu título de barão ao vencer os rebeldes em Caxias. A ordem imperial do Rio de Janeiro e dos agentes da Maioridade passou a reinar. Dado o destampatório suscitado por todo embate político mais radical, a questão municipal, no rastro da repressão de Caxias em São Paulo e Minas em 1842, foi sumindo do mapa. No lugar dela, ficou o quê? Ficou a empulhação que Lisboa descreve no livro: uma encenação eleitoral e partidária onde o eleitor se enrola enquanto as oligarquias locais disputam as prebendas do governo central e as fatias do poder.
Por mais ridículo que pareça -e que de fato tem sido-, esse malabarismo de urnas, candidatos e partidos se apresenta como uma peça essencial da ``governabilidade" brasileira. Através dele se dá o mapeamento das alianças que permitem a instauração vertical da ordem social dominando a nação. Por isso, essa encenação patética não foi -salvo raras exceções-, suprimida nos últimos 150 anos. Por isso, por causa dessa ``anarquia oligárquica"(a expressão é de Marx a respeito da Polônia) -e não em razão de um pretenso consenso democrático-, perdurava a divergência de opiniões na imprensa. Por isso, a mixórdia de ontem se parece com os conchavos de hoje. Tudo seria mais claro se a historiografia não tivesse misturado as bolas, dando sumiço à esfera municipal e inscrevendo os enfrentamentos políticos na dualidade província-governo central.
Na realidade, o soi-disant ``Regresso" centralista iniciado em 1840 teve outros rumos e não regressou a um pressuposto ``status quo" anterior. O novo arreglo nacional se dará entre as oligarquias regionais e o governo central, estirpando do jogo político nacional um ator fundamental: o município. De um enfrentamento triangular: município-província-governo central, se passou para uma rivalidade bilateral: província-corte. Recalcado no livro de Lisboa, desconsiderado pela historiografia, o debate sobre a questão municipal, sobre a maneira de fazer política na esfera local, no momento inicial da institucionalização do poder, atrapalha enormemente a compreensão do Brasil de ontem e de hoje. Por este motivo, parecemos padecer de uma ruindade genética que impede, desde sempre, a emergência de política e de políticos ``sérios". Que o digam os aliados do PFL.

Texto Anterior: A física de bacharel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.