São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Cannes evita nostalgia e festeja cinema atual

Festival francês privilegia inéditos

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O programa da edição do centenário do cinema do Festival de Cannes, anunciado quase integralmente na última semana, trouxe um perfil surpreendente. Cannes soube driblar a nostalgia. O ponto alto da seleção 1995 será a mostra competitiva. É o oposto do que se tem visto nos últimos anos.
Daqui a duas semanas, a Palma de Ouro estará sendo disputada, entre outros, por cineastas do porte de Theo Angelopoulos, John Boorman, Tim Burton, Souleymane Cissé, Terence Davies, James Ivory, Jim Jarmusch, Emir Kusturica (o único que já tem uma), Ken Loach, Manoel de Oliveira e Zhang Yimou. Isto é, 13 dos 24 concorrentes têm currículo de vitorioso. É de impressionar qualquer cinecético.
Perto da competição, as mostras paralelas empalidecem. A Quinzena dos Realizadores, cujas edições recentes vinham sendo as mais interessantes do festival, viu-se obrigada a privilegiar os jovens cineastas. Quase metade de sua seleção é formada por estreantes.
Cannes celebra assim o centenário cacifando o cinema de hoje. A produção de ontem vai ser lembrada com notável comedimento. Num gesto de rara diplomacia, em uma época de tão acirrada disputada mercadológica, a única retrospectiva do festival francês homenageia o cineasta americano por excelência, John Ford (1895-1973).
Ao mesmo tempo, em manobra estudada, apresenta-se uma cópia de ``The Cold Deck" (1917), de William S. Hart, ``por seu impressionante parentesco com o estilo de John Ford". Cannes saúda sim Ford, mas o faz frisando o contexto do ``cinema de autor" -uma metodologia sobretudo francesa, estamos entendidos.
Pouco mais haverá referente ao centenário. Bernardo Bertolucci apresenta uma cópia recém-restaurada de ``Prima della Rivoluzione" (1964) e aproveita para participar do lançamento da série de filmes produzidos pelo British Film Institute para celebrar o século do cinema, que inclui um episódio latino-americano assinado por Nélson Pereira dos Santos.
Uma cópia também restaurada do ``Nosferatu" (1922) de Murnau lembra os esforços do Projeto Lumière das cinematecas européias. Por fim, fecha a lista ``Jeunes Lumières", filme rodado por crianças, em um projeto coordenado pela Cinemateca Francesa.
Uma característica irmana todas as mostras: o privilégio ao eixo cinematográfico Bruxelas-Los Angeles. Cannes-95 vai ser, em seus ciclos oficiais, um festival euronorte-americano. A guerra da Europa contra Hollywood parece momentaneamente congelada. Oitenta por cento dos filmes oficialmente selecionados são europeus ou americanos. Sobrou quase nada para os chamados cinemas nacionais.
A ascendente produção asiática marca uma presença mais visível apenas na competição (três filmes). A africana não totaliza os dedos de uma mão.
Pior: até aqui nenhum filme brasileiro ou hispano-americano foi programado (a possível exceção, o filme de Nélson para o BFI, se enfraquece, porque o conjunto vem sendo apresentado como um evento marginal).
É como se Cannes-95 afirmasse: o cinema foi uma invenção mesmo nossa (Edison-Lumière-Skladanowsky), então é nossa a festa. Não dá para conter a sensação de que fomos barrados no baile.

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