São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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'Engraçadinha' perde força claustrofóbica

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sexo incestuoso e homossexualismo em doses crescentes levantam a temperatura em ``Engraçadinha", série brasileira exibida pela Globo de terça a sexta às 22h30.
Foi Nelson Rodrigues quem escreveu a primeira novela de televisão brasileira, ``A Morta Sem Espelho", de 1963. Mas o grande dramaturgo, jornalista e romancista foi pouco aproveitado na televisão. Sistematicamente censurado no passado, agora anunciado na vinheta global como ``genial", Nelson Rodrigues chega à ``série brasileira" em uma adaptação bastante interessante de seu romance-folhetim ``Asfalto Selvagem" (Companhia das Letras), dirigida por Denise Saraceni.
Além dos diálogos ácidos, a produção bem-cuidada admite enquadramentos e movimentos de câmera cinematográficos. O cenário teatral é em geral feliz -com exceção da mansão da família, reaproveitada da novela ``Fera Ferida" e deslocada no contexto.
Algumas interpretações são primorosas, como as da estreante Alessandra Negrini, protagonista da primeira fase do seriado, de Claudio Corrêa e Castro (Dr. Arnaldo) e Sérgio Mamberti (Nonô).
A adaptação de Leopoldo Serran seguiu o texto original de perto, sintetizando capítulos e concentrando diálogos reproduzidos na íntegra. Mas, em alguns momentos, o deslocamento de ações originalmente situadas na casa de Engraçadinha para a rua, a porta do cinema ou o gabinete do deputado na Assembléia Legislativa diminui a força claustrofóbica do original, resultante da concentração da ação no cenário domiciliar.
``Não acredito em novela realista. O que gosto é da fantasia, quanto mais delirante melhor", declarou Nelson Rodrigues em 1973. Com sua predileção pelo universo pervertido e escatológico oculto nas relações domésticas e com suas severas críticas à esquerda, o autor passava ao largo do projeto ``nacional-popular" de seus colegas noveleiros globais.
Fiel ao espírito de seu criador, ``Engraçadinha" explora essa sua predileção pela exacerbação das taras, por explicitar um mundo subjetivo recôndito no âmbito das hipocrisias familiares. Sempre em um registro nada politicamente correto, que vê patologia em tudo.
Como inúmeras novelas, esta série trata de amores e traições. Mas Rodrigues leva as paixões às últimas consequências. Cegas pelo desejo, as personagens violam tabus e sucumbem à tragédia.
``E se eu lhe disser que Sílvio não é teu primo, é teu irmão, é teu irmão!" O homem probo, político tradicional e candidato ao governo do Estado, conhecido por seu puritanismo, confessa seus pecados à própria filha e termina se suicidando. E, de um em um, os membros de uma respeitável família burguesa terão sua natureza pervertida descortinada diante do público, para nunca mais ser recomposta.
O texto, publicado em capítulos diários, de agosto de 1959 a fevereiro de 1960, no jornal ``Última Hora", contribuiu para a fama de devasso do autor. Finalmente admitido sem censura ao panteão global, o autor maldito penetra o interior dos lares. ``Engraçadinha" em cadeia nacional confirma o interesse contemporâneo pela escrutinação pública de intimidades consideradas escabrosas.

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