São Paulo, terça-feira, 2 de maio de 1995
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Carneiro define luz e ação do Cinema Novo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Na frase que definiu o Cinema Novo (``uma idéia na cabeça e uma câmera na mão"), pelo menos metade é obra de Mário Carneiro. Foi ele que, em 1959, tirou a câmera do tripé, no documentário ``Arraial do Cabo", que dirigiu com Paulo César Saraceni.
Nascido em Paris, 1930, Carneiro trouxe para o cinema as marcas de sua formação. Filho do diplomata Paulo Carneiro, suas estadas na Europa e a convivência com os intelectuais amigos de seu pai marcaram seu trabalho.
Também a formação de pintor, gravurista e arquiteto orientou seu olhar e o credenciou a audácias como a fotografia de ``Porto das Caixas" (1962), de Saraceni, em que se inspirou sobretudo nas técnicas da gravura (arte em que foi aluno do artista plástico Iberê Camargo).
Como fotógrafo, trabalhou com quase todos os principais diretores do Cinema Novo, de Joaquim Pedro de Andrade (``O Padre e a Moça", 1965) a Walter Lima Jr. (``Chico Rei", 1976). Foi também fotógrafo do documentário ``Di" (1976), de Glauber Rocha, com quem partilhou uma cela de prisão e a quem ensinou a desenhar.
É também de 1976 o único longa de ficção que dirigiu até hoje, ``Gordos e Magros", em que procurou mostrar duas faces do Brasil: uma rica (e muito gorda) e outra pobre (e muito magra).
Folha - Como você chegou ao cinema?
Mário Carneiro - Minha verdadeira vocação era a pintura. Mas houve uma grande resistência na minha família, e eu fui convencido a estudar arquitetura.
Aos 16 anos, comecei a frequentar cineclubes. Nessa época conheci o Joaquim Pedro. E aí o Plínio Sussekind da Rocha apareceu com umas cópias de filmes do Eisenstein, que ele tinha conseguido comprar. Foi uma novidade essencial para nós.
Folha - O ``Limite", de Mário Peixoto, também foi essencial?
Carneiro - O Plínio Sussekind tinha a única cópia do ``Limite" , e ele disse: ``Vamos ver pela última vez este filme que está destinado a desaparecer". Bom, eu acabei vendo umas cinco vezes o ``Limite". Na primeira, fiquei impressionado. Sobretudo com a fotografia do Edgar Brasil.
Fui somando essas experiências com as da arquitetura. Depois, de manhã, ia para o ateliê do Iberê Camargo, aprendia pintura, gravura. Quando fiz 23 anos, ganhei uma câmera de 16 mm e comecei a fazer filmes de amador.
Uma vez, em 54, 55, mostrei esses filmes para o grupo de Joaquim Pedro, Paulo César. Ficou na cabeça deles que eu seria o fotógrafo quando aparecesse algum filme, e o primeiro foi ``Arraial do Cabo", do Saraceni, em 59. Nessa época eu tinha comprado uma Cameflex.
Folha - Uma bela câmera.
Carneiro - Fantástica. Tinha uma estabilidade de imagem que dava para trabalhar com a câmera na mão com a firmeza de uma Mitchell.
Folha - E por que você resolveu tirar a câmera do tripé, em ``Arraial"?
Carneiro - Até aí existia uma influência muito forte de Eisenstein, da montagem com planos fixos. Mas, quando você vai fazer um documentário, as coisas estão em movimento, e a tendência é acompanhar. Os movimentos de câmera são necessários para seguir o que está acontecendo. Acabou que tirei a câmera do tripé, botei no ombro e fui atrás da ação.
O filme marcou aquele momento, porque o Glauber estava chegando da Bahia e disse: ``Vamos aproveitar essa onda e fazer um movimento".
Folha - O uso da luz com recursos limitados veio em seguida, em ``Porto das Caixas".
Carneiro - No fazer a gente ia descobrindo as novas possibilidades da Cameflex. E, com negativos cada vez mais sensíveis, vimos que se podia filmar em interior com pouca luz.
Meu olho era muito educado, eu tinha feito muita cópia de quadros lá no Louvre. E comecei a pensar no cinema como um mural em movimento, uma estilização do natural, à maneira de Rembrandt, com luz e sombra muito marcados.
Folha - Mas essas idéias vieram também das condições de produção do filme.
Carneiro - Sim, havia pouco dinheiro. Mas, sobretudo, era preciso tirar da cabeça aquela idéia de que para fazer cinema era necessário todo um parque de luz, que vinha do cinema da Vera Cruz, dos filmes em estúdio.
Folha - Essas influências cinematográficas -Mário Peixoto, Eisenstein etc.- eram, no início, coisa de um grupo, não?
Carneiro - Nosso grupo -eu, Joaquim, Paulo César- era menos eisensteiniano que o do CPC. O Leon Hirszman, por exemplo, não concebia que se fizessem movimentos de câmera, tinha que ser plano fixo. Nós tínhamos influência dos documentaristas ingleses.
Folha - E o Nelson Pereira dos Santos, nesse momento?
Carneiro - O Nelson já tinha feito ``Rio Zona Norte" (1957), ``Rio 40 Graus" (1955). Era uma espécie de mestre, mas não nos seduzia muito. Nós éramos da alta burguesia. O dr. Rodrigo Melo Franco, pai de Joaquim, meu pai, Manoel Bandeira etc. Era uma confraria de intelectuais.
Folha - Em ``Porto das Caixas" seu desafio era filmar interior à noite com pouca luz, não?
Carneiro - A primeira maneira de iluminar uma casa no Brasil foi com luz de lampião. Então a gente refez a luz de lampião, que é muito difícil, não é uma luz cinematográfica. Parte dele foi feito com recursos de documentário, ou seja, só rebatedores. Eu jogava a luz para uma porta lá do fundo com rebatedor, botava um rebatedor ali, rebatia a mesma luz às vezes duas ou três vezes.
Folha - É pena que nesse filme os diálogos sejam muito ruins.
Carneiro - O ponto fraco do Paulo é esse. Já em ``O Padre e a Moça", a adaptação passava pelo crivo do dr. Rodrigo Melo Franco. Joaquim escrevia e deixava na máquina, o dr. Rodrigo lia à noite e fazia anotações assim: ``Cuidado com o rocambole". Rocambole queria dizer que saiu do natural. Era escrito com tinta vermelha, uma coisa apavorante. Era uma responsabilidade o filho estar adaptando um poema dele. Ele ficava muito atento.
Como ficou atento ao ``Macunaíma" (1969). Ele tinha o original do ``Macunaíma", dedicado a ele pelo Mário de Andrade. E o Joaquim inventou umas sequências meio maoístas. Ele dizia: ``Por que o meu filho faz essas coisas? Mário, por favor, fala com ele". Mas foi uma surpresa. Essas sequências ficaram muito boas.
Folha - O Cinema Novo surge num momento de renovação mundial. Como você vê isso?
Carneiro - A Itália foi o primeiro país, no pós-guerra, a fazer filmes com muito exterior, mas ainda usando as câmaras dos estúdios. E os interiores eram um pouco em estúdio, porque não existia essa tecnologia leve.
Agora, quando o Godard foi fazer o ``Acossado", em 59, chamou o Raoul Coutard para fotografar. E o que fez o Coutard? Comprou todo o negativo de 400 asas de Paris. Era filme para fotografia, não para cinema. Mas ele queria um material supersensível.
Então, colou os rolinhos, fez rolos de 300 metros. Os laboratórios se negaram a revelar esse tipo de filme. Então, Coutard montou um laboratório e ele próprio revelou. Todo mundo queria a mesma coisa: fugir do estúdio, não precisar do aval dos dos banqueiros.
Folha - Hoje as condições técnicas são melhores?
Carneiro - Sim. Aqui, foi muito importante a vinda do argentino Ricardo Aronovitch, que fotografou alguns filmes -``São Paulo S.A.", ``Os Fuzis", outros- antes de ir para a Europa.
Quando ele foi fazer ``O Homem que Comprou o Mundo", do Eduardo Coutinho, aceitei fazer a cenografia só para ver o Ricardo fotografando. Queria ver o que o gringo sabia que eu não sabia. Aí aprendi alguns macetes que apliquei logo, no ``Capitu". E ele me elogiou por ``Capitu" (1967).
Folha - Esse contato com o Ricardo mudou seu estilo?
Carneiro - Não. Levou a uma correção dos meus erros. Eu tinha certa falta de respeito por essa coisa chata da fotografia que é a tal unidade cinematográfica. o filme vai do começo ao fim com o mesmo tipo de contraste e vai criando uma monotonia visual. Eu sempre gostei de ousar nessa direção. É mania de pintor. Quando o quadro está muito harmonioso, tem de introduzir uma certa dissonância.
Folha - Mas isso implica o risco de saltos de luz, não?
Carneiro - Isso que eu queria fazer, da falta de unidade, exige certa unidade na luz de base, porque senão você dá pulo muito grande. E daí não harmoniza mais a imagem. Graças ao Ricardo, fiquei mais atento a isso.

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sobre Mário Carneiro à pág. 5-4

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